9 de Dezembro, o dia da corrupção

Todos os eventos evocativos do problema são importantes, mas não podemos ficar apenas e só por eles.

1 de Janeiro – Dia Mundial da Paz
20 de Fevereiro – Dia Mundial da Justiça Social
8 de Março – Dia Internacional da Mulher
21 de Março – Dia Internacional contra a Discriminação Racial
3 de Maio – Dia Mundial da Liberdade
1 de Junho – Dia Mundial da Criança
5 de Junho – Dia Mundial do Ambiente
17 de Julho – Dia Mundial da Justiça Internacional
21 de Setembro – Dia Internacional da Paz
1 de Outubro – Dia Internacional da Pessoa Idosa
16 de Outubro – Dia Mundial da Alimentação
25 de Novembro – Dia Internacional pela Eliminação da Violência Doméstica
9 de Dezembro –  Dia Internacional contra a Corrupção                   
10 de Dezembro – Dia Internacional dos Direitos dos Animais

O mundo parece ter entrado nos últimos anos numa espécie de “moda eufórica” de escolher um dia do ano para assinalar grandes questões de indiscutível interesse global.

Claro que é uma solução para evitar que essas questões, muitas delas correspondentes a profundos problemas sociais, caiam ou se mantenham no esquecimento geral. Será indiscutivelmente um modo para que, ao menos uma vez em cada ano, nos recordemos desses problemas e sobretudo também para que, por esta via, se permita a criação de uma certa e necessária consciência colectiva e de maior envolvência de todos no sentido de se darem passos conjuntos na procura de soluções ajustadas.

Sim, a subsistência ou, ao contrário, o controlo dos problemas de natureza social depende de toda a sociedade! Depende de todos e de cada um de nós!

Desde logo e numa primeira linha, dependem do envolvimento de todos os cidadãos – de onde emerge a importância da denominada sociedade civil – e depois, em linhas necessariamente mais secundárias, mas não menos importantes, das instituições que existem e que têm funções de controlo e de procura de soluções mais imediatas para esses mesmos problemas.

É claro que não existirão nunca soluções perfeitas nem definitivas para questões ou problemas de natureza social. Mas é igualmente claro que, se nenhum esforço for realizado, por certo que os problemas tenderão a agravar-se. Desde logo porque muitos deles ficam mergulhados na dimensão oculta que os caracteriza, como sejam, por exemplo, questões tão graves como a violência doméstica, a violência de género, a violência sobre as crianças ou sobre os idosos, os atentados à natureza, ao ambiente e aos animais, todas as formas de injustiça e de limitação das liberdades e, claro, também a corrupção.

Deste ponto de vista, concordo em absoluto com a existência e utilidade de momentos que ciclicamente nos acordem e relembrem – que nos agitem por dentro – sobre os grandes problemas das nossas sociedades.

Porém, a criação destas datas evocativas, como as que aleatoriamente foram indicadas no início do texto, suscita também alguns possíveis sinais de desconfiança sobre outros reais e efectivos alcances que possam ter.

Se, como se referiu, a sua adopção é importante enquanto parte de um processo de criação de um certo e necessário envolvimento colectivo em torno dos problemas que evocam, não será menos verdade que, pelo facto de existir um dia no calendário em que todos somos relembrados da subsistência desses mesmos problemas, possamos sentir uma espécie de consciência mais tranquila, aliviadora mesmo de um certo sentimento inconsciente de culpa pela subsistência de um problema que é de todos. Enfim de um “lavar de alma”, porque afinal comungamos desse momento, numa espécie de ritual litúrgico, que nos pode levar até a afirmar em consciência algo do tipo “pois é, isto é de facto um problema grave…”, para no momento seguinte nos desligarmos dele até ao próximo ano, esquecendo que o nosso contributo de cidadania, tal como o de todos os outros, é fundamental para a resolução mais eficaz do mesmo.

E se soubermos, como sabemos, que existem entidades com funções específicas para trabalhar os problemas em questão, as tais que constituem a segunda linha de intervenção – por exemplo, as polícias para as questões da violência ou os tribunais para as questões das injustiças, das liberdades e também da corrupção –, mais legitimados nos sentiremos para nos envolvermos menos ou mesmo para não nos envolvermos de todo na procura de soluções, como procurei mostrar anteriormente em “Corrupção em Portugal - ‘uns’ e ‘os outros'”.

Note-se, a propósito deste suposto efeito de aliviar de consciências, como a paz é assinalada em dois dias distintos ao longo do ano (1 de Janeiro de 21 de Setembro) e praticamente não se conhecem momentos da história da humanidade em que não tenha existido um conflito armado algures no mundo…

O problema da corrupção é um dos que, desde 2003, data em que foi subscrita por grande parte dos países do mundo a convenção da ONU contra a corrupção, se encontra nas circunstâncias de ter um dia no calendário para ser recordado.

Todos os anos, no dia 9 de Dezembro, um número crescente de entidades têm assinalado a data com eventos de diversa ordem – workshops, conferências, seminários, e agora, por força da pandemia, webinars – para relembrar a gravidade do problema, os seus efeitos aos mais variados níveis da sociedade, da economia e da política e também da qualidade e eficácia das medidas e dos instrumentos de controlo (entre nós tem-se preferido o termo combate, assumindo uma terminologia próxima das lógicas de guerrilha, como se se tratasse de uma questão de um nós – cidadãos de bem – contra uns eles – malfeitores – e não de uma questão verdadeiramente de todos, como procurámos ver em “Contra a corrupção marchar, marchar!”.

Enfim, todos os eventos evocativos do problema são importantes, como se disse, mas não podemos ficar apenas e só por eles. Se assim for não teremos muito mais do que o ritual anual, o tal descargo de consciência colectiva. Os discursos muito bem-intencionados sobre o que deve ser a ética e a integridade na sociedade e na vida pública, quais são os efeitos da corrupção e ficarmos todos tranquilamente satisfeitos até ao próximo ano, para nos voltarmos a encontrar novamente com discursos semelhantes sem que entretanto pouco ou nada se altere relativamente ao concreto do problema.

É verdade que está em fase de apresentação pelo Governo a denominada Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024, documento que assume, como creio nenhum outro o tenha alcançado anteriormente, um abrangente e interessante conjunto de propostas no âmbito da prevenção e da repressão da corrupção.

Ao nível preventivo, e em traços gerais, assumem-se medidas relativamente a vertentes tão importantes como a educação para a cidadania, a formação dos dirigentes e demais servidores públicos sobre as componentes da ética e da integridade no serviço público, o aprofundamento dos instrumentos de prevenção de riscos nas entidades do sector público e o seu alargamento às entidades do sector privado, bem assim como a realização de estudos com um carácter mais transversal sobre o fenómeno, como tem sido sugerido pelo Observatório de Economia e Gestão de Fraude e que vimos neste espaço em “Corrupção em Portugal - conhecer melhor para controlar mais”.

A nível repressivo, são de destacar o aprofundamento da cooperação entre as entidades com funções de controlo da gestão pública, uma gestão mais eficaz e eficiente dos procedimentos criminais, incluindo nos mecanismos de reporte e denúncia, e também de uma maior efectividade da cooperação internacional.

Mas por muito boas que sejam as medidas – e ainda importa saber como serão concretizadas no plano normativo –, se os cidadãos não se envolverem nesta questão que a todos interessa, o mais provável será que nos próximos anos continuemos ao dia 9 de Dezembro a criticar a ineficácia das medidas existentes e a falta de vontade para resolver o problema.

Claro que as medidas, que nunca serão perfeitas, devem ser realistas e ajustadas à realidade do problema (daí a importância dos estudos tendentes ao seu conhecimento) e as instâncias com funções de controlo (preventivo e repressivo) devem dispor dos meios (humanos, formativos e técnicos) adequado às missões que lhes sejam confiadas. Mas o envolvimento dos cidadãos é fundamental.

E o que se espera dos cidadãos?

O que se espera afinal de cada um de nós é muito simples e pode resumir-se em três ideias fundamentais:

  • Sermos exemplos cada vez melhores de responsabilidade e de integridade;
  • Exigirmos responsavelmente dos outros esses mesmos índices de integridade e não compactuar com situações obscuras ou menos claras neste plano;
  • Denunciarmos às instâncias competentes as situações de que tenhamos conhecimento relativamente a ocorrências de menor ética e integridade praticadas por terceiros 

A finalizar, ocorre-me aquela estória em que alguém prefere um relógio que não funcione a um que esteja atrasado, com o argumento de que, por estar parado, oferece ao menos a certeza de marcar as horas correctamente em dois momentos do dia.

Eu, por mim, não quereria nenhum dos dois.

Votos de um Feliz Natal e que 2021 seja para todos um ano melhor do que o que agora terminamos!

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