Vacinação: e se começássemos a pensar mais na procura e menos na oferta?

A progressão da segunda vaga, sem o auxílio de um confinamento estrito, mostra como a gestão dos factores comportamentais na evolução da pandemia, através da comunicação, não pode ser ignorada. A minimização do risco, a banalização da informação (por ser excessiva, reiterada, por vezes contraditória) ou a sua inadequação, seja nos meios, no espaço ou nos mensageiros, trouxe-nos, também, até aqui.

Sobre a oferta, começa a não haver grandes dúvidas. Em boa verdade, nos meios científicos nunca as terá havido. Em Fevereiro, não tinha ainda a pandemia explodido na Europa e já o genoma do SARS-CoV-2 fora sequenciado. O conhecimento acumulado sobre outros coronavírus por várias equipas de investigação (a de Oxford, por exemplo) faziam antever vacinas eficazes e com abundância. De tal modo que os governos iniciaram a gigantesca operação logística que se exige para inocular milhões de pessoas em tempo-recorde, quando ainda decorriam os ensaios clínicos.

Há algumas semanas, o programa 60 Minutos da CBS, emitido em Portugal pela SIC-Notícias, dava nota da escala e complexidade da operação norte-americana para distribuição das vacinas para a covid-19, desde a administração federal à coordenação com os diversos Estados e com os departamentos de saúde pública de cada condado. A magnitude dessa operação, como de tantas outras já em marcha em vários países, é de tal ordem que a margem de erro ou insucesso chega a parecer desprezível. Embora com um certo recato, a dita reportagem lá chegou ao destino de qualquer trabalho jornalístico: a pergunta difícil. O que pode falhar? Na voz de uma coordenadora de saúde pública de Rhode Island (se a memória não me atraiçoa) surge um número: 60%. Era essa a proporção de técnicos de saúde (entre médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico) que confirmavam a sua intenção de serem vacinados, num inquérito realizado naquele Estado, pouco antes da emissão da reportagem. Muito pouco, não é? Foi o que também pensei.

É compreensível que, neste momento, estejamos pouco disponíveis para fazer as perguntas complicadas. Muito menos queremos colocá-las depois de meses de saturação, prejuízos vários e mortes, quando a solução está aí, confirmando a expectativa e, porventura, superando-a em eficácia. Porém, é crucial reconhecer que este esforço científico inédito e com resultados tão promissores não é acompanhado pelo comportamento das populações. Em termos simples, o risco que pende sobre a nossa esperança é a oferta de milhões de vacinas superar largamente a procura. E isto, porque a solução não é, apenas, técnica. A progressão da segunda vaga, sem o auxílio de um confinamento estrito, mostra como a gestão dos factores comportamentais na evolução da pandemia, através da comunicação, não pode ser ignorada. A minimização do risco, a banalização da informação (por ser excessiva, reiterada, por vezes contraditória) ou a sua inadequação, seja nos meios, no espaço ou nos mensageiros, trouxe-nos, também, até aqui.

Certamente que diversos mecanismos de controlo social serão generalizados para garantir vacinação em massa. Na Índia, com o recurso à aplicação estatal Aahadaar, ou na China, com uso das aplicações que suportam o Sistema de Crédito Social, esse controlo será autoritário. Por cá, serviços estatais, empresas e companhias aéreas conduzirão alguns cépticos às filas dos centros de vacinação, com exigências de uma prova de inoculação, por vezes no limite da constitucionalidade. Todavia, as sociedades plurais em que vivemos requerem mais do que a coacção explícita ou implícita, até para bem do progresso científico futuro. Urge, por isso, que a mensagem e todos os seus auxiliares sejam depurados.

Façam os leitores a sua sondagem pessoal para assim poderem aquilatar o quão premente é influenciar as atitudes das massas quanto à vacinação. Nela incluam coabitantes, depois os tios e os primos, dos mais próximos aos mais afastados, todos quantos neste Natal têm uma desculpa para não convidar lá para casa. Sigam inquirindo os amigos de todas as ocasiões, os que estão sempre do contra e os mais moderados. E também os colegas de trabalho, não esquecendo, sobretudo, os mais fiáveis. Nas horas permitidas, tratem ainda de dar uma voltinha higiénica pelo quarteirão, com a pergunta na ponta da língua, depois de darem os bons-dias à dona da mercearia, ao barbeiro do bairro e à florista. Se já não o tiverem feito, logo verão. Sim, anos de negacionismo sustentado por campanhas de desinformação e pela paranóia de movimentos antivacinação ameaçam triunfar e não apenas num continente distante.

Por cá, ao primeiro ensaio deste tempo que requer uma comunicação rigorosa e em doses necessariamente personalizadas, a inépcia veio de onde menos se espera. E isso é preocupante, muito preocupante. Transformar em certeza de primeira página um documento de trabalho sobre as prioridades de vacinação para a covid-19 e, assim sendo, um trabalho em aberto, com reformulações e melhorias ainda por fazer, é um péssimo serviço prestado pelos órgãos de comunicação social portugueses, em geral. A indignação política subsequente também não fez por acrescentar confiança às populações.

Um grande pacto editorial para a comunicação dos efeitos, riscos e limites da vacinação à covid-19 é um caminho? O interesse público exige esse compromisso. Se tal é lesivo da liberdade de imprensa, então o mínimo que se exige é o rigor e a proporcionalidade em cada redacção, na exacta medida em que delas se fez uso nos laboratórios, na sintetização de cada vacina.

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