SNS: SOS por mão amiga!

O actual Governo tem de retirar urgentes ilações deste violento embate para fundamentar medidas imediatas de preparação do nosso SNS face aos complexos desafios que se avizinham.

O SNS tem percorrido um caminho cheio de pedregulhos, uns como resultado de caminhos novos e acidentados, outros colocados propositadamente para o fazer tropeçar.

Ainda a obra do SNS dava os seus primeiros passos e houve logo quem a quisesse embargar.

Em 1982, o governo presidido pelo Dr. Pinto Balsemão, com o pretexto atabalhoado de transformar as administrações distritais de saúde em administrações regionais de saúde, publicou o DL n.º 254/82, onde procedeu à revogação de 46 artigos da então Lei de Bases da Saúde.

Em 1984, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 39/84, declarou aquele DL inconstitucional.

A pandemia em curso tem sido um teste violento aos vários tipos de sistemas de saúde a nível internacional e à sua capacidade efectiva de resposta.

Apesar das insuficiências e debilidades de resposta, o nosso SNS tem conseguido um melhor desempenho no combate à pandemia do que a generalidade dos sistemas de saúde europeus.

Perante uma pandemia que já dura há quase um ano, com exigências de resposta muito intensas, com uma agressividade de contágio muito elevada e com a grande maioria dos aspectos do comportamento viral desconhecidos dos meios científicos, o desgaste político e, sobretudo, o desgaste institucional/organizacional na área da saúde são inevitáveis.

O actual Governo tem de retirar urgentes ilações deste violento embate para fundamentar medidas imediatas de preparação do nosso SNS, enquanto instrumento constitucional de garantia do direito à saúde para todos os cidadãos, independentemente da sua condição socio-económica, face aos complexos desafios que se avizinham.

Num país como o nosso, com uma população muito envelhecida, com um poder de compra baixo e com desigualdades sociais notórias, não existe qualquer alternativa ao SNS e à sua função insubstituível de dinamizador do Estado Social.

Ao longo das suas décadas de existência, é óbvio que um dos factores profundamente limitativo e debilitador para o seu adequado desenvolvimento foram várias políticas de subfinanciamento, bem como a permissão, e até incentivo, de desvio dos dinheiros públicos para viabilizar os negócios privados neste sector e possibilitar lucros aos respectivos accionistas, como aliás estava estabelecido na anterior Lei de Bases da Saúde publicada em 1990.

No entanto, a terapêutica imediata não passa somente por uma injecção de dinheiro.

Na actual situação, colocar a questão no mero aumento do financiamento do SNS é como querer acumular água num depósito furado.

As adequadas dotações de financiamento e de recursos humanos a nível do SNS têm de ser acompanhadas de uma profunda reorganização dos serviços públicos de saúde e de novos métodos de gestão dirigidos a uma efectiva cultura de gestão pública que assegure mecanismos de participação e de regular prestação pública de contas pelo trabalho desenvolvido pelas respectivas administrações.

Simultaneamente, têm de ser dados passos no sentido de estabelecer uma gradual política de delimitação dos sectores prestadores dos cuidados de saúde, começando, desde logo, por impedir a canalização dos dinheiros públicos derivados dos nossos impostos de cidadãos contribuintes para os bolsos de accionistas privados e complementando-se com a criação de regimes de trabalho dos profissionais de saúde atractivos e com a adequada majoração salarial pela opção da chamada dedicação plena/exclusiva.

Os serviços públicos de saúde não são somente edifícios e aparelhos, mas organismos vivos. E quem lhes dá vida são os profissionais de saúde.

Uma política de recursos humanos urgente e arrojada é condição nuclear para redinamizar o SNS e colocá-lo no patamar de resposta que os nossos cidadãos carecem.

O sector da Saúde, em particular a área hospitalar, é aquele onde se verifica uma permanente incorporação tecnológica, com a introdução contínua de novos conhecimentos e meios técnico-científicos nos planos diagnóstico e terapêutico que configuram uma ampla revolução tecnológica.

A técnica, representando o domínio do ser humano sobre a matéria e uma superior manifestação do espírito criador, é simplesmente um meio, e um meio que nunca pode ser encarado como escravizador, mas antes um factor libertador da essência humana.

Assim, importa ter bem presente que a experiência dos últimos séculos mostra com toda a evidência que sempre que se processam revoluções tecnológicas, casos marcantes do tear mecânico e da máquina a vapor nos primórdios da revolução industrial, impõem-se mudanças radicais nos modos de organização e da produção do trabalho.

No nosso país, estes modos mantêm-se intactos há décadas e são um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento da capacidade de resposta atempada às necessidades dos cidadãos.

O Dr. António Galhordas, um dos principais artífices do movimento das Carreiras Médicas em 1961, que lançou as primeiras sementes do SNS, referia com frequência que o Prof. Miller Guerra, outro importante precursor do SNS, costumava afirmar que “as instituições são incapazes de se reformarem a si próprias”.

Sendo esta observação outro dado adquirido da experiência acumulada, uma medida imediata seria a constituição de uma comissão com pessoas profundamente conhecedoras da realidade da Saúde e com inegável experiência de intervenção cívica neste delicado sector, que num curto período de tempo apresentasse uma proposta fundamentada de reorganização do SNS, assumindo um papel exterior às instituições de saúde.

No actual momento, o SNS necessita, no imediato, de uma mão amiga que o coloque a salvo dos “predadores” que voltam a aparecer ao sentirem-no exausto com esta luta terrível em defesa da vida dos nossos cidadãos.

E necessita também que o Governo não continue sem regulamentar a Lei de Bases da Saúde após quase um ano e meio da sua publicação, porque esta atitude é, por si só, altamente comprometedora da viabilidade do SNS.

Então, quem estende primeiro a mão? O Governo ou a intervenção cidadã em defesa do seu direito à saúde e do seu direito à vida?

Aproveitando o refrão de uma conhecida canção do advogado e compositor brasileiro Geraldo Vandré, aqui fica o desafio ao Governo:

“ Vem, vamos embora
que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer”

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