Annus horribilis, ansiedade e depressão

Daqui a uns anos, quando nos lembrarmos de 2020, vamos lembrar-nos de muitas coisas pouco positivas e, certamente, muitas dessas coisas estarão também em livros que não nos deixarão esquecer. Spoiler: a grande vilã será a covid-19.

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Priscilla Du Preez/Unsplash

Costumo brincar e dizer que este ano começou a dar para o torto a partir do momento em que o Papa Francisco se irritou e deu aquela valente palmada na mão da mulher que o agarrou nas celebrações da passagem de 2019 para 2020. Talvez, num universo supersticioso, até tenha sido por causa disso.

Tomo a liberdade de dizer que, para muitos de nós, o ano de 2020 tem sido como o ano de 1992 para a Rainha Isabel II: problemas de todos os tipos, tragédias, escândalos e castelos a pegarem fogo. Há 28 anos, no dia 24 de Novembro, Isabel II recitava um dos seus mais sinceros e dolorosos discursos, atribuindo àquele ano a qualidade de annus horribilis.

Não sou realeza, mas, neste momento, tenho o mesmo sentimento. Daqui a uns anos, quando nos lembrarmos de 2020, vamos lembrar-nos de muitas coisas pouco positivas e, certamente, muitas dessas coisas estarão também em livros que não nos deixarão esquecer. Spoiler: a grande vilã será a covid-19.

Para além do vírus e dos mais de um milhão de mortos associados, este foi o ano em que tivemos, entre outras desgraças: uma ameaça de guerra, após a morte do general iraniano Qasem Soleimani; incêndios florestais de proporções nunca antes vistas, tanto na Austrália como na Amazónia; os terramotos das Caraíbas, do México e da Turquia; os assassinatos assistidos de diversos negros nos Estados Unidos e no mundo, incluindo o de George Floyd e, mais recentemente no Brasil, o de João Alberto; uma gigantesca e incontrolável nuvem de gafanhotos, um ciclone-bomba e a presença de vespas assassinas no continente americano; a explosão de Beirute, no Líbano; a morte de diversas personalidades importantes nas suas respectivas áreas; e danos irreparáveis na economia global.

Todavia, para mim, este ano ficará certamente ainda mais marcado pelas constantes indisponibilidades de ansiolíticos e antidepressivos no mercado. Essas indisponibilidades – que muito afectaram os respectivos utilizadores, incluindo eu – reflectem não apenas o quão doente está grande parte da nossa sociedade, mas também o quão negativamente impactante foi este ano para a nossa saúde mental.

Felizmente, o tema “saúde mental” já não é tão tabu como era há dez anos, apesar de, em alguns círculos, continuar a ser. Trata-se de um problema de saúde pública que tem de ser triplamente acompanhado e mitigado: por nós mesmos, pelos que nos rodeiam e, sim, pelo Estado. Dentro das nossas capacidades, temos de tentar desenvolver a coragem para sermos suficientemente vulneráveis a ponto de admitirmos que não estamos bem e procurarmos ajuda; as pessoas à nossa volta têm de perceber o papel fulcral que desempenham na melhoria da nossa saúde e o Estado tem de ser mais incisivo no que diz respeito ao apoio médico e a campanhas de combate ao preconceito e ao estigma social desencadeados por essas enfermidades.

Estamos a falar de doenças que podem não ser visíveis, mas que podem ser tão dolorosas como uma fractura exposta. A falta de ar, o aperto no peito, as febres que duram segundos e a sensação de estarmos a percorrer, sem qualquer protecção ou fato espacial, a órbita da Terra (que, já agora, é redonda), não podem ser sintomas negligenciados. E apesar da comunicação do nosso estado interior depender, em grande parte, de nós, é também importante que as pessoas à nossa volta saibam prestar mais atenção aos poucos sinais que vamos emitindo. Isso porque, lá está, dependemos do bem-estar uns dos outros e não podemos tentar solucionar problemas não identificados.

Honestamente, gostava de poder dizer ao meu “eu de há um ano” algumas coisinhas: compra duas ou três caixas a mais de certos medicamentos; não planeies tantas viagens; compra uma passadeira para correres em casa; e sempre que fores ao supermercado traz um pacote de papel higiénico (não me perguntes porquê). Por sorte, não foi preciso dizer-lhe para ir adoptar um cão – está aqui a Olivia a ladrar que não me deixa mentir.

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