Diagnósticos de covid-19 não podem ser feitos por decreto, diz Relação de Lisboa

Não basta um teste, é preciso um médico para declarar a doença, sustentam juízas. Autoridades de saúde dos Açores desautorizadas outra vez. Quarentenas obrigatórias fora do estado de emergência voltam a ser consideradas ilegais.

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Acórdão da Relação de Lisboa põe em causa quarentenas obrigatórias Nuno Ferreira Santos

O Tribunal da Relação de Lisboa sustenta que não basta um teste PCR para se ter um diagnóstico válido de covid-19. Só um médico pode fazer o diagnóstico desta ou de outra doença, dizem duas juízas da 3ª secção criminal daquele tribunal, que desta forma condenam a imposição, feita pela Autoridade Regional de Saúde dos Açores, de quarentena obrigatória e isolamento profiláctico a quatro turistas alemães que estiveram 20 dias retidos em quartos de hotéis da região em Agosto.

Em causa está um recurso, feito pela Autoridade Regional de Saúde dos Açores (ARS-Açores), de uma decisão de habeas corpus do Tribunal de Ponta Delgada que, em 27 de Agosto, ordenou a “libertação” dos quatro turistas, por considerar ilegal aquela privação da liberdade. A ARS-Açores recorreu para a Relação, pedindo que fosse “validado o confinamento obrigatório dos requerentes, por serem portadores do vírus SARS-CoV-2 [um deles] e por estarem em vigilância activa, por exposição de alto risco, decretada pelas autoridades de saúde [os outros três]”.

As juízas dizem-se perplexas: “Desde quando é que compete a um tribunal fazer diagnósticos clínicos, por sua própria iniciativa e com base nos eventuais resultados de um teste? Ou à ARS? Desde quando é que o diagnóstico de uma doença é feito por decreto ou por lei? Como a recorrente tem mais do que obrigação de saber, um diagnóstico é um acto médico, da exclusiva responsabilidade de um médico”, sustentam.

Para as juízas da Relação, “a prescrição de métodos auxiliares de diagnóstico (como é o caso dos testes de detecção de infecção viral), bem como o diagnóstico quanto à existência de uma doença, relativamente a toda e qualquer pessoa, é matéria que não pode ser realizada por Lei, Resolução, Decreto, Regulamento ou qualquer outra via normativa”. Isto porque, acrescentam, os diagnósticos são actos médicos que “o nosso ordenamento jurídico reserva à competência exclusiva de um médico”, sob pena de usurpação de funções.

Quem decreta o isolamento?

No caso em concreto, aos quatro turistas nunca foi facultado um contacto telefónico na sua língua, e muito menos com um médico “o que se mostra francamente inexplicável, face à invocada gravidade da infecção”, sublinha o acórdão. A imposição de quarentena (para os não infectados) e isolamento profiláctico (para a doente) foi feita apenas pela autoridade de saúde, e isso é contestado por estas juízas.

Mas também é isso que acontece a nível nacional, pelo menos a quem não tem um teste positivo à doença provocada pelo novo coronavírus. No site SNS24, nas questões relativas ao isolamento, afirma-se que “deve ficar em isolamento se: tiver tido contacto com um doente diagnosticado com COVID 19, e esta medida for determinada pela autoridade de saúde [ou] tiver sido diagnosticado com COVID 19 e se o médico assistente que o avaliar disser que não precisa de internamento”.

Para estas duas juízas, a autoridade de saúde não tem competência para determinar a privação da liberdade de ninguém. Esta é a questão onde se demoram mais tempo: se um diagnóstico só pode ser feito por um médico, ordenar uma privação da liberdade depende da decisão de um juiz. Pelo menos fora do estado de emergência, como então acontecia.

“Os normativos invocados pela Autoridade Regional de Saúde que sustentaram a privação de liberdade imposta aos requerentes por meio de notificação de isolamento profiláctico tratam-se de orientações administrativas não vinculativas para os requerentes”, sustentam no acórdão. Por outras palavras, uma circular de uma entidade administrativa não se aplica aos cidadãos, sendo apenas instrumentos para os funcionários desse serviço.

Trata-se da mesma linha de argumentação dos vários tribunais de primeira instância açorianos que decretaram o habeas corpus noutros processos, e também da fundamentação usada pelo Tribunal Constitucional num caso idêntico, no qual considerou a quarentena obrigatória imposta a turistas na região como uma detenção ilegal.

Dizem os juízes do Palácio Ratton que essa imposição de isolamento “em nada de substancialmente significativo] se afasta do que resultaria da aplicação de uma (hipotética) pena curta de prisão, porventura até com aspectos mais gravosos (por exemplo, a falta de acesso a um espaço comum para exercício físico)”.

Reconhecendo que o actual enquadramento jurídico não é suficiente para fazer face a uma pandemia como a de covid-19, as juízas da Relação subscrevem as considerações do Tribunal de Ponta Delgada que mandou libertar os quatro turistas alemães: “Urge legislar sobre tal matéria, estabelecendo-se, de modo claro, os princípios fundamentais a que deve obedecer, deixando os aspectos detalhados para o direito derivado – e somente esses”. Trocando em miúdos, é preciso rever a lei. Mas isso vêm dizendo os constitucionalistas desde Março passado.

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