Continuamos à espera de um “milagre” na comunicação da covid-19

Numa altura em que as restrições decretadas pelo Governo não permitem fazer planos a médio prazo, pelo próprio dinamismo das medidas e das regiões que afectam, parece-me precoce que se esteja a fazer promessas envolvendo o Natal, com Costa a afirmar que não pretende impor medidas tão restritivas como na Páscoa. O que é diferente de dizer que não se devam traçar cenários e comunicá-los de forma clara à população.

Passámos de ser o melhor povo do mundo, o “milagre” português, para sermos considerados apenas medianos, um povo igual aos outros. Há dias, em entrevista à TVI24, António Costa dizia que “a transmissão da doença não depende do Governo, depende exclusivamente do comportamento das pessoas”. Ainda que esta afirmação possa ser, em parte, verdadeira, estamos neste momento a assistir à completa desresponsabilização dos agentes políticos e autoridades de saúde na contenção da pandemia de covid-19, acompanhada de um “passar de culpas” para os cidadãos.

São eles (nós, na verdade), já se sabe, que não cumprem as regras, que quebram o isolamento, que não lavam as mãos. O que as autoridades políticas e sanitárias se esquecem de referir é que esses mesmos cidadãos não têm, muitas vezes, ao seu dispor todas as ferramentas necessárias para decidir de forma consciente e informada. Convém não esquecer que cinco em cada dez portugueses têm níveis limitados de literacia em saúde, de acordo com o último inquérito nacional. Este número aumenta quando estão em causa populações mais vulneráveis, como sejam os idosos, pessoas com baixos rendimentos, ou com doenças crónicas, para citar apenas alguns exemplos.

Em termos de comunicação, não se pretende que as autoridades portuguesas inventem a roda. Os manuais de comunicação de risco descrevem de forma muito concreta como deve ser a comunicação durante uma epidemia por doença respiratória. A comunicação deve ser proactiva, transparente, clara, precisa, regular e útil. Para além disso, a informação transmitida deve ser empática, reconhecendo as emoções das pessoas, e atempada. É muito importante que as autoridades políticas e de saúde reconheçam a incerteza e a temporalidade das mensagens que transmitem e das medidas que implementam.

De facto, a pandemia de covid-19 reveste-se de uma enorme incerteza. Ainda que hoje se saiba mais em relação ao vírus do que em Março, a informação é, para além de complexa, muito dinâmica. Aquilo que sabemos hoje pode não ser verdade amanhã, e é fundamental que as mensagens reconheçam esta temporalidade. Tal como é fundamental que as mensagens sejam adaptadas às populações a que se dirigem e sejam veiculadas através de canais diversos. Comunicar com os jovens entre os 15 e os 25 anos, por exemplo, não é igual a comunicar com as pessoas acima dos 65.

A propósito da temporalidade, anda-se há várias semanas a discutir como será o Natal. Foi a 9 de Outubro, numa visita ao Hospital de Braga, que o presidente Marcelo abordou o período festivo que se avizinha: “É preciso repensar o Natal em família, repensa-se o Natal”. Depois disso, seguiu-se o primeiro-ministro António Costa, que afirmou querer “manter o Natal”: “Com bacalhau ou com peru, com consoada, com missa do galo ou sem missa do galo, cada um escolherá. Mas queremos manter o Natal”.

Numa altura em que as restrições decretadas pelo Governo não permitem fazer planos a médio prazo, pelo próprio dinamismo das medidas e das regiões que afectam, parece-me precoce que se esteja a fazer promessas envolvendo o Natal, com Costa a afirmar que não pretende impor medidas tão restritivas como na Páscoa. O que é diferente de dizer que não se devam traçar cenários e comunicá-los de forma clara à população.

Se é verdade que os vírus não conhecem barreiras geográficas ou sociais, potencialmente infectando a todos de igual modo, a realidade não é assim tão linear. A pandemia de covid-19 veio acentuar as desigualdades sociais que já existiam, criando um fosso maior entre os privilegiados e aqueles que, por um motivo ou outro, se encontram nas margens da sociedade. A este propósito, e lembrando as palavras do primeiro-ministro sobre o Natal, seria desejável que nesta altura já se conhecesse uma estratégia para os lares de idosos, por exemplo. É bom relembrar que muitos idosos por esse país fora estão fechados há oito meses, afastados não só das famílias, mas também de qualquer contacto com o “mundo real”.

Correndo o risco de não ser “patriótica”, é preciso voltar a dizer que a pandemia de covid-19 em Portugal tem sido marcada por uma total ausência de estratégia de comunicação de risco. Inúmeros especialistas, de várias áreas, têm vindo a público alertar para esta realidade. É amplamente sabido que a comunicação de risco e o envolvimento das comunidades é fundamental na gestão de uma pandemia, de forma a promover a adesão às medidas preventivas de controlo da doença – na ausência de um tratamento eficaz ou de uma vacina, como é o caso com a covid-19. E isto não é compaginável com mensagens confusas e erráticas, que em nada contribuem para a adesão às medidas preventivas e para a contenção do vírus.

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