Quando Sérgio nos explicou o que era dar a volta ao medo e dar a volta ao mundo

A reedição de dois discos essenciais, Pano-cru e Campolide, supre uma falha indesejada na discografia disponível de Sérgio Godinho.

Primeiro o piano, austero, a ecoar num quase silêncio, e depois esta voz: “A princípio é simples, anda-se sozinho/ passa-se nas ruas bem devagarinho.” Raras serão as pessoas que não reagem logo, ao ouvir tal início. E muitas serão aquelas que trautearão de memória o resto. Porque O primeiro dia, de Sérgio Godinho, entrou há muito na memória colectiva. Mas porquê falar desta canção agora? E logo num tempo em que “andar sozinho” e “nas ruas bem devagarinho” pode ser associado aos cuidados com a pandemia?

Por uma razão simples: o disco que inclui essa canção, Pano-Cru, acaba de ser reeditado, juntamente com um outro que também há muito desaparecera das lojas: Campolide. Lançados, respectivamente, em 1978 e 1979, foi com eles que Sérgio fechou a década de 70, depois de quatro LP editados pela Guilda da Música/Sassetti, os dois primeiros ainda no exílio (Sobreviventes, 1971; e Pré-Histórias, 1972) e os seguintes já em liberdade e sob os efeitos da revolução (À Queima Roupa, 1974; e De Pequenino Se Torce o Destino, 1976). E fechou-a trocando-a pela Orfeu de Arnaldo Trindade, antes de se transferir para a Polygram (mais tarde Universal, editora a que continua ligado) e aí gravar primeiro a banda sonora do filme Kilas, o Mau da Fita, de José Fonseca e Costa (1980) e depois álbuns de uma nova fase musical, como Canto da Boca (1981), Coincidências (1983) ou Salão de Festas (1984).

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Capas dos LP Pano-cru (1978) e Campolide (1979), agora reeditados

Mas Pano-Cru e Campolide são, como o próprio reconheceu na sua biografia musical, Retrovisor, assinada por Nuno Galopim (Ed. Assírio & Alvim, 2006), “discos de charneira, uma ponte entre o antes e o depois.” Pano-Cru, além de O primeiro dia, e de canções que remetem para a fase de intervenção política que se seguiu ao 25 de Abril (como Venho aqui falar, Lá isso é ou O homem-fantasma, parente próximo de figuras criadas por Sérgio como o Barnabé de Pré-Histórias ou o Casimiro de Cuidado com as imitações, uma canção de Campolide), tem ainda A vida é feita de pequenos nadas, a Balada da Rita (composta para o filme Kilas e nele muito bem cantada por Lia Gama) ou 2.º andar direito, que nos seus 6 minutos e 54 segundos descreve a zanga e reconciliação de um jovem casal (“ele vinte anos, ela dezoito”), relatada por um narrador que lhes é próximo mas que eles não vêem nem ouvem, e que na canção se identifica assim: “É preciso explicar que sou eu o vizinho/ e à noite vivo neste quarto sozinho/ corpo cansado e cabeça em desalinho/ e o prédio inteiro nos meus ouvidos.” Uma canção bem rara, na abordagem e na forma.

Campolide, ao dar livre curso à inspiração do seu antecessor, além da já citada Cuidado com as imitações, trouxe às reservas musicais de Sérgio Godinho preciosidades como Lá em baixo (“toda a gente passou horas/ em que andou desencontrado/ como à espera do comboio/ na paragem do autocarro”), Mudemos de assunto, Os conquistadores (escrita para o filme Le Soleil En Face, de Pierre Kast, 1980) ou Espectáculo, uma muito bela canção que Shila já gravara no seu álbum de estreia (Doce de Shila, 1977) e aqui surge numa versão definitiva. Além disso, podemos ouvir as vozes de Adriano Correia de Oliveira, José Afonso e Fausto Bordalo Dias em Quatro quadras soltas ou a de Vitorino em Vivo numa outra terra.

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Capas dos discos Roba Di Amilcare (1999) e Kilas, o Mau da Fita (1980)

Curiosidade adicional, também relatada no livro Retrovisor: a canção O primeiro dia teve uma versão em italiano, cantada pelo próprio Sérgio Godinho em Itália, em 1995, durante a Rassegna Della Canzone d’Autore, onde recebeu o Prémio Tenco. “Foi fantástico cantá-la ao vivo perante os italianos. Estudei a pronúncia, fui lendo a tradução de Sergio Sacchi, e aquilo parecia-me de repente uma canção italianíssima”, diz Sérgio Godinho, citado por Nuno Galopim. Esta gravação está incluída no disco Roba Di Amilcare (1999), colectânea de canções desse festival, onde ao lado  de cantores italianos como Paolo Conte, Ornella Vanoni, Angelo Branduardi, Fabrizio De Andrè, Eugenio Finardi, Jovanotti ou Vinicio Capossela, só há dois não-italianos: Sérgio Godinho (com o seu Il primo giorno) e Chico Buarque, este num registo de 1996, a cantar um tema de Paolo Conte, Genova per noi.

Falamos de tudo isto porque, repetindo a “frase batida” que Sérgio usou na canção (“e que nem sequer é minha”, como ele reconheceu), hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas. E porque, umas vezes melhor e outras vezes pior, lá vamos, como diz a canção e a realidade confirma, dando a volta ao medo e dando a volta ao mundo. E com alívio (adeus, Trump!).

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