Orgulhosamente sós?

Esperemos que, 55 anos depois da célebre frase de Salazar, Portugal não fique “orgulhosamente só” ao adotar uma estratégia anacrónica cujo único benefício visível se traduzirá numa ida de Lisboa ao Porto em 75 minutos num comboio “made in Germany”.

A crise de saúde pública originada pela covid-19 está a ter consequências severas do ponto de vista económico, sendo expectável que, nestas circunstâncias, a atividade não possa voltar ao normal, o que significa, de acordo com a OCDE, que os efeitos desta pandemia terão um efeito negativo permanente sobre a economia.

Nesse mesmo registo, o FMI considera que se não forem adotadas, imediatamente, medidas estruturadas e de longo prazo, a atual crise poderá levar a fenómenos de histerese no mercado de trabalho, bem como a uma redução no investimento com óbvias consequências de longo prazo no nível económico.

Neste contexto, as economias enfrentam dois desafios em simultâneo: mitigar os efeitos de curto prazo da economia e, simultaneamente, iniciar o processo virtuoso de transformação de longo prazo.

Na realidade, se não formos capazes de definir uma estratégia de transformação estrutural da economia portuguesa que responda aos desafios impostos por uma cura robusta desta já muito exposta fratura efetivamente estrutural (vide, entre outros, os setores do turismo e adjacentes), corremos o risco, se, de facto, não formos capazes de definir essa estratégia – e de a concretizar –, de ficar, irremediavelmente, no “pelotão dos últimos” (trajetória B da figura 1).

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O exemplo Sul Coreano

Em julho de 2020, o governo da República da Coreia apresentou o denominado “Korean New Deal – National Strategy for a Great Transformation”, que, segundo as autoridades, “will set the Foundation for Korea’s next 100 years”.

De acordo com este documento, a covid-19 originou três mudanças estruturais.

Em primeiro lugar, acelerou a transformação digital da economia, penalizando os setores da indústria e serviços mais tradicionais.

Em segundo lugar, a pandemia reforçou a consciência cívica no sentido da procura crescente de uma economia de baixo carbono e amiga do ambiente (i.e., economia verde).

Por fim, a terceira transformação estrutural está associada à alteração substancial no funcionamento da economia e nas estruturas sociais, com consequente efeito no mercado de trabalho. Na realidade, apesar da economia “verde e digital” potenciar a criação de novas empresas e empregos, o certo é que irá gerar um mismatch entre empregos e competências, com efeito inevitável ao nível do desemprego, em particular do trabalho menos qualificado (histerese).

Para responder a estas transformações, o “Korean New Deal” pretende transformar a Coreia num “smart country” (centro da transformação digital assente numa infraestrutura de dados, redes e inteligência artificial); “green country” (equilíbrio entre pessoas, natureza e crescimento); e “safe country” (investindo nos recursos humanos de forma a reforçar a qualidade dos empregos e da estrutura de proteção social).

A transformação da Coreia num “smart, green and safe country” permitirá, de acordo com o Governo coreano, cumprir a visão para o país e que se resume ao seguinte: a) de uma economia “seguidora rápida” para uma economia “pioneira”; b) de uma economia dependente do carbono para uma economia de baixo carbono; c) de uma economia dividida socialmente para uma economia socialmente inclusiva, fator imprescindível do sucesso das nações [1].

Na via inclusiva definida, importa referir que o “Korean New Deal” apresenta ainda um plano de implementação, no qual se prevê a participação do Governo, oposição, governos regionais e sociedade civil, bem como o reporte periódico acerca do cumprimento do mesmo, de forma a garantir o seu escrutínio público.

Orgulhosamente sós?

Num discurso proferido na posse da Comissão Executiva da União Nacional, em 18 de fevereiro de 1965, Salazar terá proferido a celebre frase “orgulhosamente sós”.

Num contexto distinto, mas igualmente severo, esperemos que 55 anos depois, e em matéria de resposta estrutural à crise da pandemia, Portugal não fique “orgulhosamente só” ao adotar uma estratégia anacrónica, elaborada nos cinzentos corredores do poder, e cujo único benefício visível se traduzirá numa ida de Lisboa ao Porto em 75 minutos num comboio “made in Germany”.

[1] As Origens do Poder, da Prosperidade e da Pobreza – Porque Falham as Nações, de Daron Acemoglu e James A. Robinson

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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