O cheque, o plano e o resto (?)

Com um Cheque numa mão, um Plano na outra, tudo parece indicar que o sucesso é inevitável. Mas será que podemos ficar tranquilos? Nesta como noutras (grandes) coisas, e como diz a sabedoria popular, o pior pode ser o resto.

Reza a história que nos longínquos (?) tempos em que o planeta Terra era uma selva, o Sr. Coelho, diariamente ameaçado de morte pelos malvados coiotes, decidiu pedir ajuda ao Sr. Leão.

Com resposta pronta, o Sr. Leão, do alto do seu trono, terá dito: “quando os coiotes te perseguirem, transformas-te em árvore e verás que não te mordem.”

Entusiasmado, o Sr. Coelho decidiu adotar tão brilhante estratégia. Assim, no dia em que os coiotes correram atrás dele, implementou o plano: parou, pensou e tentou transformar-se numa enorme e esplendorosa árvore!

Infelizmente, perante a aproximação dos coiotes, e face ao insucesso da estratégia (por mais que tentasse não se conseguia transformar em árvore), só lhe restou uma solução: fugir!

Vem isto a propósito do entusiasmo, quase generalizado, com que foram acolhidas duas recentes noticias.

Por um lado, o acordo a que chegaram os líderes dos 27 no que respeita ao plano de relançamento económico dos países e setores mais afetados pela pandemia, no montante de 750 mil M€ – O Cheque.

Por outro lado, a apresentação do denominado “Plano Costa e Silva” que, em 120 páginas, descreve a “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social 2030”, procurando dar resposta à questão: “o que fazer no day after?” – O Plano.

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O Cheque

No dia 21 de julho de 2020, e depois de cinco dias de longas negociações, os líderes europeus chegaram a um acordo no que respeita ao plano de relançamento económico no montante de 750 mil M€ (Next Generation EU – NGEU), que, associado ao orçamento da União Europeia para 2021-2027 (1.074,3 mil M€), representa um importante instrumento de política económica (1824,3 mil M€).

Financiado através da emissão de dívida europeia comum de longo prazo (uma novidade), o NGEU é um pacote financeiro com duas componentes distintas. Uma primeira, no valor total de 390 mil M€, corresponde a transferências não reembolsáveis a distribuir pelos diferentes Estados europeus (Portugal irá receber cerca de 15,3 mil M€ a executar até 2026, ou seja, aproximadamente 7,2% do PIB de 2019). Uma segunda componente corresponderá a um financiamento de 360 mil M€ que terá de ser reembolsado pelos diferentes Estados (Portugal terá acesso a uma linha de financiamento de até 15,7 mil M€).

Com uma queda do PIB prevista para 2020 próxima dos 10% e uma capacidade financeira limitada de apoio à economia quando comparada com outros países europeus, Portugal “apostou” tudo nestas negociações, procurando através da solidariedade europeia obter os fundos que, de uma forma autónoma, não conseguiria assegurar.

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O Plano

No dia 22 de julho de 2020 foi apresentado o “Plano Costa e Silva”. Para o autor, os pilares essenciais para a recuperação têm a ver com a “reconversão industrial e a reindustrialização, mas também com a saúde, com o setor social e a luta contra a pobreza, com o sistema científico e de inovação e a aposta fulcral para o seu reforço e consolidação”.

Neste contexto, e para dar resposta à questão “o que fazer no day after?”, são identificados dez eixos estratégicos (programas de investimento), de entre os quais se destaca a rede de infraestruturas (alta velocidade, aeroporto de Lisboa, etc.); a reconversão industrial (promoção da “Marca Portugal”, atração do investimento externo, etc.); e a transição energética e a eletrificação do país (aposta nas energias renováveis, eletrificação do país, etc.).

Fazendo referência à palavra “Estado” mais de 70 vezes e marginalmente referida a palavra “Impostos” (apenas duas referências a “IRC”), o “Plano Costa e Silva” tem como finalidade colocar “Portugal como potência atlântica do softpower para a reinvenção do seu papel geopolítico no Seculo XXI”.

E o resto (?)

Com um Cheque numa mão, um Plano na outra, tudo parece indicar que o sucesso é inevitável.

Mas será que podemos ficar tranquilos? Nesta como noutras (grandes) coisas, e como diz a sabedoria popular, o pior pode ser o resto.

Com efeito, importa perceber se o Cheque será utilizado de maneira idêntica à que observámos no passado. Quem irá controlar? E a quem se destina?

Por outro lado, importa perceber como se articula o Cheque com o Plano, o Plano com o Grande Plano (o da Europa) e como se garante que o que está no Plano nos permitirá ganhar o futuro. Será que as grandes obras públicas propostas no Plano (uma vez que correspondem, em muitos casos, ao que sempre quisemos fazer e não tínhamos dinheiro para tal) são efetivamente as obras públicas que o país precisa num quadro em que a tecnoestrutura económico-social está em profunda alteração? Ou será que as infraestruturas propostas respondem apenas às necessidades de um Portugal do inicio do milénio?

Por fim, importa perceber se o papel do Estado no Plano respeita o principio da subsidiariedade ou se reflete, apenas, uma visão moderna das teses do Conde d’Abranhos segundo o qual “ao Estado pertencia organizar a esmola”.

Epílogo

Perante o insucesso do plano, o Sr. Coelho, indignado, dirigiu-se ao Sr. Leão confrontando-o com o fracasso: “disseste para me transformar em árvore sempre que os coiotes me tentassem comer, mas não me disseste como o fazer.”

O Sr. Leão, de forma rápida e certeira, responde: “eu apenas dou as grandes ideias, os pormenores são contigo!”

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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