O lavrador foi à Lua e voltou para beber o seu chá, ou Cat Stevens em 2020

Cinquenta anos depois da gravação original, Tea For The Tillerman renasce para nos lembrar que é preciso voltar a pôr a chaleira ao lume.

Não é comum, na chamada música popular, um cantor regravar um álbum inteiro 50 anos depois, com o mesmo título e as mesmas canções. Há casos de continuidade, como o dos Jethro Tull com Thick As A Brick (1972), procurando num novo disco de idêntico título (mas com um 2 à frente), lançado em 2012, explicar o que teria acontecido ao imaginário jovem protagonista do disco, Gerald Bostock, entre os oito anos e os 50 que então estaria prestes a atingir. Ou Let It Be (Naked), que despiu o célebre derradeiro álbum dos Beatles dos pesados arranjos de Phil Spector, para gozo de McCartney, que nunca os suportou. Ou as regravações de canções feitas, por exemplo, por Fausto Bordalo Dias em Atrás dos Tempos Vêm Tempos (1996) ou por Patxi Andión em Nunca, Nadie (1999), fazendo ligeiras actualizações nas letras. Não contam, para este efeito, as reedições remasterizadas (largos milhares), porque estas assentam em artifícios de engenharia, muitos deles benéficos e outros nem tanto.

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As capas das edições de 1970 e 2020, ambas desenhadas por Cat (agora Yusuf) Stevens DR

Voltando ao início: não é comum alguém regravar um álbum 50 anos depois. Mas foi o que fez Cat Stevens com Tea For The Tillerman, recém-editado na sua versão 2: as mesmas 11 canções do original, umas ligeiramente alteradas, outras mais laboriosamente refeitas, todas com novos arranjos, mas sem se afastarem muito da matriz, com escassas excepções.

Entre os dois, o mundo mudou muito e o novo disco reflecte essas mudanças, até visualmente (os desenhos são do próprio Cat Stevens): o lavrador da capa (“alguém que trabalha muito, aquela pessoa de bom coração de que todos precisamos”, descreveria o cantor) continua à mesa, no campo, só que agora tem um fato de astronauta, enquanto as crianças que brincam na árvore partilham auscultadores e um telemóvel. Só a mulher que ergue os braços ao céu, pedindo chuva, permanece em silhueta no horizonte. Com uma diferença essencial: já é noite, não dia; e a Lua substituiu o Sol. Por detrás da toalha da mesa, espreita agora um gato. Uma alusão ao próprio Cat, reaparecido.

O cantor também mudou. Nascido Steven Demetre Georgiou em 1948, em Londres, filho de imigrantes (Stavros, greco-cipriota ortodoxo, e Ingrid, sueca e baptista), escolheu para cantar um nome de gato (Cat) e estreou-se com um disco em louvor a um cão (I Love My Dog). A sua carreira na música foi bem-sucedida, mas não isenta de percalços. Ainda nos anos 60, vítima de excessos (três concertos por noite, bebidas, exaustão física), contraiu tuberculose. Renasceu na década seguinte, após tratamento hospitalar e alguma reclusão doméstica. Logo em 1970, gravou dois álbuns: Mona Bone Jakon e a seguir Tea For The Tillerman, disco que viria a figurar na lista dos 100 álbuns mais vendidos dessa década, com três milhões de cópias.

Mas alguns discos depois, nova viragem. Em 1975, em Malibu, na Califórnia, quase se afoga a nadar ao largo e implora a Deus pela vida. Uma onda trá-lo de volta à praia. Vê nisso um sinal e reavalia a existência. O irmão mais velho oferecera-lhe um exemplar do Alcorão e é aí que encontra “um mundo que desconhecia”. Adere ao islamismo, muda o nome para Yusuf Islam, grava um último disco e retira-se. “Voltei a fazer parte da humanidade”, disse.

Mais tarde, já como Yusuf, volta a gravar. Uma e outra vez. E recupera, aos poucos, o nome de Cat Stevens. O retomar do chá para o lavrador terá sido ideia do filho de Cat/Yusuf, seguindo-se um reencontro com o guitarrista Alun Davies e o produtor Paul Maxwell-Smith, ambos essenciais no primeiro Tea, daí nascendo o segundo. E assim teve nova vida um álbum que figura entre os clássicos da música popular. Curiosamente, a voz do cantor parece não ter-se alterado neste meio século. Na verdade, aos 22 anos a sua voz já soava como a de alguém bem mais velho, e agora, aos 72, beneficiando de cuidados que diz ter com as cordas vocais, é como se nada se tivesse passado.

Na música, sim, há mudanças: arranjos mais elaborados, um rap pelo meio de Longer boats e dois temas quase irreconhecíveis: um Wild world mais próximo do ragtime, como se tivesse sido entregue a Van Morrison, longe dos ares de reggae da primeira versão (não por acaso, Jimmy Cliff fez dele um êxito nos anos 70), e um On the road to find out com forte balanço de blues.

De resto, as preocupações do álbum original mantêm-se: o (mau) estado do planeta, a relação entre gerações, as forças da natureza, a atenção devida às crianças. E isso reflecte-se nos videoclipes de Father and son, Where do the children play? (ambos de animação), On the road to find out ou Wild world. “Um pequeno gole para o Homem, um bule gigante para a Humanidade”, escreve ele no disco, parafraseando Neil Armstrong quando este chegou à Lua, em 1969. Tea For The Tillerman nasceu um ano depois, em 1970. Renasce agora, para nos lembrar que é preciso voltar a pôr a chaleira ao lume.

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