Papa exclui dos sacramentos quem decida recorrer à eutanásia

Na carta da Congregação para a Doutrina da Fé, denominada “O Bom Samaritano”, o Papa apela à objecção de consciência dos profissionais de saúde e estabelece que “quem escolhe tirar a própria vida rompe a sua relação com Deus e com os outros”. Logo, não deve poder aceder à confissão nem à santa unção.

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Vaticano rejeita categoricamente qualquer sacramento a quem tenha decidido recorrer à eutanásia ou ao suicídio assistido Nelson Garrido (arquivo)

O Vaticano reiterou esta terça-feira a sua condenação da eutanásia, lembrando que “qualquer cooperação formal ou material imediata” daquele acto é “um pecado grave” que nenhuma autoridade pode impor ou permitir. Mas a carta da Congregação para a Doutrina da Fé, aprovada pelo Papa Francisco, vai mais longe ao excluir de sacramentos como a santa unção e a confissão quem tenha manifestado intenção de pôr fim à vida.

Denominado Samaritanus Bonus ("O Bom Samaritano"), o documento, que contém esclarecimentos de índole moral e prática sobre como cuidar dos doentes em sofrimento e em vim de vida, dirige-se especificamente aos que estão em contacto com doentes terminais, sejam familiares, tutores, capelães hospitalares ou profissionais de saúde. E, reiterando a tese da Igreja de que a eutanásia é “um acto homicida que nenhum fim pode legitimar”, não tolerando por isso “nenhuma forma de cumplicidade ou colaboração activa ou passiva”, a carta apostólica apela à objecção de consciência dos profissionais chamados a praticar tal acto nos países em que ele é permitido, mesmo que para tal seja preciso desobedecer à lei.

No ponto dedicado ao “discernimento pastoral para quem pede eutanásia ou suicídio assistido”, e por considerar que “uma pessoa que escolhe com plena liberdade tirar a própria vida rompe a sua relação com Deus”, o documento exorta os agentes pastorais a absterem-se de assegurar os sacramentos de fim de vida – além da santa unção também a confissão e a comunhão. “Encontramo-nos diante de uma pessoa que (…) realizou a escolha de um acto gravemente imoral e persevera nisso livremente. Trata-se de uma manifestação de não-disposição para a recepção dos sacramentos e da penitência”, argumenta o Vaticano, para a seguir esclarecer que tais sacramentos só poderão ser concedidos no momento em que a disposição do doente “em dar passos concretos permita ao ministro concluir que o penitente modificou a sua decisão”.

“Isto comporta também que uma pessoa que se registou numa associação para receber a eutanásia ou o suicídio assistido deva manifestar o propósito de anular tal inscrição antes de receber os sacramentos”, especifica ainda a carta pastoral, para acrescentar que, nos casos em que o doente esteja já privado de consciência, o sacerdote poderá administrar tais sacramentos se se puder “presumir o arrependimento, a partir de algum sinal dado anteriormente pela pessoa doente”.

Porque “a eutanásia é um acto intrinsecamente mau, em qualquer ocasião ou circunstância”, qualquer “cooperação formal ou material imediata a um tal acto é um pecado grave”, insiste a carta, que apela a que as conferências episcopais do mundo inteiro se batam pela consagração do direito à objecção de consciência nos países cujo quadro legislativo prevê a eutanásia e o suicídio assistido. E, considerando que os cuidados paliativos traduzem “a expressão mais autêntica da expressão humana e cristã de cuidar”, o Vaticano sustenta que estes cuidados diminuem “drasticamente o número de pessoas que pedem a eutanásia”.

Noutro ponto, o documento eleva a exclusão da obstinação terapêutica à categoria de “obrigação moral”. “Na iminência de uma morte inevitável é lícito tomar a decisão, em ciência e consciência, de renunciar a tratamentos que provocariam apenas um prolongamento precário e penoso da vida”, lê-se na carta, para precisar que os cuidados destinados a manter as funções fisiológicas essenciais (hidratação, nutrição...) devem ser mantidos até quando “o organismo seja capaz de beneficiar deles”. Dito de outro modo, “a suspensão de toda a obstinação [terapêutica] irrazoável na administração dos tratamentos não deve ser desistência terapêutica”. 

Falta a “compaixão"

Ao PÚBLICO, o padre e professor de filosofia Anselmo Borges, que se declara contra a eutanásia, considerando mesmo que legalizá-la “é contra a essência do Estado”, começa por dizer que entende “a lógica” deste documento, nomeadamente no ponto em que nega os sacramentos aos doentes que tenham optado por antecipar a sua morte. Mas ressalva que, se chamado perante um caso concreto, “muito provavelmente daria a absolvição”. Porquê? “Na dor e no sofrimento, a presença da Igreja só pode ser a da compaixão”, responde. 

Em Portugal, o plenário da Assembleia da República deverá apreciar no mês que vem a proposta de realização de um referendo sobre a eutanásia, que chegou aos deputados por via da Federação Portuguesa pela Vida, cuja proposta de iniciativa popular que recolheu 95.287 assinaturas.

Não se espera, contudo, que possa haver consenso político que permita avançar com a consulta popular, numa altura em que os cinco projectos de lei que despenalizam a eutanásia, apresentados pelo PS, BE, PAN, PEV e IL, vêm sendo discutidos na especialidade, com o objectivo de fazer avançar um projecto único a partir dos cinco diplomas aprovados na generalidade.

Mas a carta doutrinal não se fica pela questão dos adultos em fim de vida. No parágrafo dedicado às crianças com doenças terminais, a carta assinada pelo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Luis Ladaria, entre cujas funções se inscreve a difusão da doutrina católica, questiona a utilização do diagnóstico pré-natal para “finalidades selectivas”. “O uso às vezes excessivo do diagnóstico pré-natal e o afirmar-se de uma cultura hostil à deficiência induzem frequentemente à escolha do aborto, chegando a configurá-lo como prática de ‘prevenção'”, refere o documento, para concluir que o recurso ao diagnóstico pré-natal para finalidades selectivas “é contrário à dignidade da pessoa e gravemente ilícito porque expressão de uma mentalidade eugenista”. “Noutros casos, depois do nascimento, a mesma cultura leva à suspensão ou ao não-início dos cuidados à criança recém-nascida, pela presença ou, até mesmo, só pela possibilidade de desenvolver no futuro uma deficiência. Também esta abordagem, de matriz utilitarista, não pode ser aprovada. Semelhante procedimento, além de ser desumano, é gravemente ilícito do ponto de vista moral”, acrescenta.

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