O doce início de uma campanha

Marcelo Rebelo de Sousa não ganharia muito em despir o fato de chefe de Estado, sobretudo porque ainda tem algumas decisões importantes a tomar e convém que as tome com independência.

Dia após dia, o número de pré-candidatos a Belém vai aumentando até ao momento em que começa a diminuir, ainda antes das eleições. Em 2016, chegou a haver 18 e ficaram dez. Orlando Cruz (que volta a tentar), Manuela Gonzaga, Castanheira Barros, Paulo Freitas do Amaral, Graça Castanho, Sérgio Fraga, José Pedro Simões e António Araújo da Silva todos manifestaram desejo de avançar mas ficaram pelo caminho. Este ano, já vamos em nove adversários, dez com Marcelo Rebelo de Sousa, e pelas minhas contas nem todos chegarão ao boletim de voto.

Não seria bom que a corrida presidencial fosse monopolizada por um candidato. A concorrência saudável não é só um chavão. Contribui para o aperfeiçoamento, aguça a superação e melhora o desempenho dos que concorrem entre si. Isso acontece nas campanhas como no jornalismo e como em muitas outras áreas. Mais candidatos trarão mais temas à agenda que também não se quer monotemática — a política nunca se quer monotemática.

Não significa isto que todos estejam em condições de ganhar. Já nem é certo que os candidatos que têm o apoio dos partidos acabem com um resultado melhor — a única certeza é que só chega a Belém o candidato que tem o apoio de pelo menos metade do país que vota. Haja 18 ou apenas oito concorrentes, não há outras contas a fazer.

Não tenho a menor dúvida de que esse candidato é o que ainda não se apresentou, o que mantém o tabu, o que se reserva o luxo de se apresentar o mais perto possível das eleições. E percebo porquê: primeiro, é Presidente; segundo, está destacado nas sondagens; terceiro, não podia estar mais perto dos portugueses. Literalmente: as regras de distanciamento social não o permitiriam.

Marcelo Rebelo de Sousa não ganharia muito em despir o fato de chefe de Estado, sobretudo porque ainda tem algumas decisões importantes a tomar (como a avaliação do Orçamento para 2021 ou a permanente avaliação da resposta à crise) e convém que as tome com independência, como fiel da balança. O facto de ter começado na linha da frente a morder a marca dos 70% nas sondagens dá-lhe algum conforto, mas ao mesmo tempo vai obrigá-lo a mobilizar aquela franja do eleitorado que dispensa ir às urnas porque está tudo decidido e o vencedor anunciado.

Essa percentagem (ainda muito prematura) também o torna, de certo modo, intocável. Como se faz uma campanha contra o Presidente dos afectos, o Presidente-sol, o homem que abraçou tantos portugueses e portuguesas na sua tragédia? Essa dificuldade transpareceu no discurso das duas candidatas de esquerda que se apresentaram esta semana. A bloquista Marisa Matias, apesar das críticas, disse que o mandato de Marcelo era “exemplar” e “incomparável”. A socialista Ana Gomes, que deixou o PS sem pio, fez um balanço positivo pela descrispação que o actual Presidente introduziu na sociedade.

Em breve saberemos se esta semana foi o início de uma campanha doce ou se foi o doce início de uma campanha em tempos de crise.

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