O último dia da pandemia

Para se combater o racismo deve-se atuar como em qualquer outra epidemia ou flagelo.

Tal com em outras pandemias, o racismo e xenofobia também terminarão um dia. Ninguém decretará superiormente o seu fim, nem saberemos o dia ao certo em que acontecerá. Mais do que percebermos quando irá terminar, mais dificuldade teremos em entender porque alguma vez começou.

Primeiro, julgamos que são apenas alguns casos isolados, sem importância para o nosso dia-a-dia. Que não chegará até perto de nós. São apenas notícias de outros países, que de tão longínquos que estão, não são do nosso mundo. Estamos vacinados e prevenidos contra estas doenças, julgamos. Moléstias de séculos passados, quando o mundo era outro, e não estávamos protegidos. São outras realidades que não abalam o tranquilo dos nossos dias.

Depois, desvalorizamos. São apenas algumas ocorrências sem relevância. Existem problemas muito maiores e mais urgentes que devem ser discutidos e que realmente devemos dar importância e atenção. Além disso, se lhe atribuímos valor, o problema cresce, e nós queremos é que finde. Acreditamos de tão estúpido que é, acabará por morrer, não faz sentido que sobreviva na harmonia da nossa vivência. No prosaísmo dos nossos dias, são agruras de terceiro mundo, sem lugar a grandes evocações. Contudo, a estupidez persiste sempre, infiltrando-se silenciosamente onde julgamos que é estanque e vedado a estes flagelos. Não a compreendemos por acharmos que estes males já não cabem neste nosso mundo.

Um dia, porém, chega perto de nós. A alguém que conhecemos, que sabemos onde trabalha, que frequenta os sítios que passamos e vivemos. Lemos nos jornais, ouvimos na rádio e vemos as imagens nas televisões e nas redes sociais. O problema parece real, mas queremos que seja um mau sonho, e este irá passar. Ele, porém, não passa, e os maus sonhos continuam. Porque nós não somos assim, não somos racistas, somos humanistas, não acreditamos que algo assim possa existir entre nós. E, por isso, não tomamos cuidados, porque julgarmos que o problema se acabará por extinguir.

Chega depois a indulgência do que não se consegue justificar. “São imagens retiradas do contexto”. “Não é bem assim como parece”. “Foram sujeitos a provocações”. “São sempre os mesmos”. A infiltração da estupidez fica então visível e aproveita-se da desvalorização, da indiferença, dos silêncios, e ocupa o seu espaço, desgastando uma estrutura aparentemente resistente, mas que vai cedendo à inércia e à ausência de qualquer ação que a enfrente. Crescendo na desatenção e no alheamento em que vivemos, ofuscando o que nos é essencial. Tal como em 1963 Martin Luther King Jr. escreveu numa carta a partir da prisão de Birmingham onde esteve preso: “Teremos de nos arrepender, nesta geração, não somente das palavras e ações odiáveis das pessoas más, mas também do silêncio espantoso das pessoas boas”.

Para se combater o racismo deve-se atuar como em qualquer outra epidemia ou flagelo. Atuar de forma rápida e precoce, não deixando que focos por mais pequenos que sejam se propaguem e disseminem onde não o deverão fazer. Não desvalorizando, isolando e identificando a proveniência do contágio. O que não pode existir, não deve subsistir. Tem de ser controlado e posteriormente erradicado como qualquer outra doença infeciosa.

Haverá um dia, talvez não assim tão distante, num mundo mais pacífico e tolerante, que as pessoas se interrogarão, porque existem outras que são discriminadas por serem de outra raça ou de outra cor. Será esse, porventura, o seu último dia. Quando nenhum ser humano o perceber, como começou e por que razão, como acontece com outros comportamentos e convicções, esquecidos e enterrados na nossa evolução enquanto sociedade, e que nos nossos dias não conseguimos compreender como puderam algum dia existir.

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