O último prego no meu catolicismo

O sagrado, o divino está em todo o lado, talvez com excepção do Vaticano. Ali jogam-se poder, ambição, contradições insanáveis.

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PÚBLICO

Em recente visita a Roma e à Cidade do Vaticano, uma pessoa que me é muito próxima proferiu a expressão que dá título a este artigo, depois de termos participado de uma eucaristia na basílica de S. Pedro. Ainda pensei que tivesse sido a circunstância de os celebrantes serem de provecta idade e de a missa ter sido rezada, atenta a grande variedade de nacionalidades, sobretudo em Latim. Mas não. Infelizmente, essa pessoa não sentiu qualquer espiritualidade em todo o microestado. E muito menos ante as fabulosas obras de arte dos Museus do Vaticano. Disse-me – com o que concordo – que as pinturas e esculturas modernas eram um atentado à pobreza e à missão essencial da igreja, dando-me o remoque da curiosidade trazida pela guia de Francisco não aceitar os produtos da horta da casa agora ocupada por Bento, que manda distribuir pelos mais carenciados. E então estas obras de arte?

Retomei, então, a minha própria experiência pessoal, mais de uma década antes, e também eu nada senti de sagrado naquele que é um Estado. Apenas me recordei – agora já na recente visita – da estrondosa investigação de Fréderic Martel, No armário do Vaticano, e quanto tudo o que ele escrevera fazia sentido. O sagrado, o divino está em todo o lado, talvez com excepção do Vaticano. Ali jogam-se poder, ambição, contradições insanáveis. Lembremos que o papado só é minimamente respeitado e respeitável há cerca de século e meio, tendo antes sido fonte de desmandos, orgias, corrupção, homicídios, enfim, tudo o oposto do que deveria ser a igreja de Cristo.

A Reforma e a Contra-Reforma foram, por isso, essenciais, a que o catolicismo não continuasse a ser, depois das comunidades primitivas, um “travestimento” do divino no mais mundano e sujo que existe. A partir destes dados, falámos sobre a resignação de Bento XVI, a enorme muralha de interesses que rodeia o Vaticano, a tragicomédia dos Vatileaks, com a culpa a ser atribuída… ao mordomo e com um perdão parcial de pena em troca do silêncio do italiano transformado em bode-expiatório. Também abordámos os rumores de que Francisco já terá decidido resignar após a morte do papa emérito, por já ter percebido que a Cúria e conferências episcopais ricas e influentes como a norte-americana não cedem ao seu notável ímpeto reformista, apostando mais numa nova eleição em que a maioria dos cardeais já foi por ele nomeada.

Francisco sabe que a mais antiga instituição do mundo só se reforma através de “micropassos”. Ele já os tem dado em relação a temas como a homossexualidade, cujo tratamento no catecismo católico tem o dedo de Ratzinger, e cuja hipocrisia faria corar de vergonha os vendilhões do templo. O mesmo tem feito quanto ao papel da mulher na igreja, dirigindo-se às freiras com um enfático “vocês não são as criadas dos clérigos!”, ao invés do que o machismo reinante sempre defendeu.

O passo de gigante que pretendia dar quanto à abertura do celibato facultativo foi-lhe cortado aquando do Sínodo dos Bispos em que pretendia usar o caso dos padres casados na Amazónia (e, diga-se, dos pertencentes às igrejas particulares orientais em comunhão com o Papa) para reiniciar algo que já existiu na própria igreja. Não é por acaso que, nos protestantes, os casos de pedofilia – ao menos conhecidos – são muito menores, fruto de um entendimento tão auto-evidente de que uma sexualidade reprimida é uma sexualidade sofrida e que, ao sê-lo, se volta como lanças pontiagudas que ferem e matam os outros, sobretudo os mais indefesos.

As medidas tomadas por Francisco de maior transparência na denúncia destes crimes sexuais esbarram com o veto de gaveta de muitos bispos. Sim, as forças instaladas e que comem da gamela corrupta associada à obra de Cristo – eles, verdadeiros anticristos – ainda dominam a Cúria e só uma exigência dos crentes, mobilizados e a nível mundial, fará acelerar o processo. Uma igreja sem ovelhas deixa a gamela vazia e, se não houver gamela, os abutres morrem.

Foi este sobressalto dos crentes, esta espécie de revolução de quem, na verdade, devia ser servido pela igreja, que propus ao meu interlocutor. Se algo consegui, foi a separação entre a igreja e a fé: uma antítese que nunca deveria acontecer, mas que me parece ser a única maneira de continuar a dizer que Jesus é central na vida, mas não a igreja, seja ela qual for.

Recordei, por fim, o cardeal Tolentino, um dos nomes por quem nutro profundo respeito na igreja e o seu monumental discurso no 10 de Junho. No seu mais recente livro, O que É Amar um País, para além desse texto, em um outro, o cardeal-poeta reflecte sobre as duas dimensões do tempo: chrónos e kairós. O primeiro é quantitativo e voraz, tal como o deus Cronos ia devorando os seus filhos. Kairós é qualitativo, é o tempo de estar com e para o outro. A pandemia convida a uma passagem do primeiro para o segundo, tal como o futuro da igreja só se conseguirá em um tempo que não seja medido pela quantidade de dinheiro ou honrarias, mas pela qualidade com a qual cada pastor traz nas mãos o coração das suas ovelhas.

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