“Estou de consciência tranquila…”

O esclarecimento do que se passou e passa em Reguengos que sirva também para se entender que uma sociedade que maltrata os seus mais velhos é uma sociedade sem raízes, nem memória.

Segundo os relatórios que têm vindo a público, o que se passou no Lar de Reguengos de Monsaraz é a consequência trágica da negligência desumana e do desprezo a que estão votados os mais velhos na nossa sociedade. Mas aparentemente todos os implicados têm e terão sempre a consciência tranquila: “Fizemos o possível, não dispomos de meios, a responsabilidade não é nossa…”. Na verdade, diluída numa cadeia burocrática de pessoas e entidades, é fácil atribuir a culpa a outro(s) e difícil apurar responsabilidades. E assim vamos tendo sempre a consciência tranquila…

A gravidade do acontecimento em Reguengos tem gerado uma acesa polémica na sociedade portuguesa, o que é salutar. Mas, em minha opinião, passa ao lado do que é essencial. Não que não seja importante conhecer, entender tudo o que se passou ao pormenor, responsabilizar e, eventualmente, punir quem prevaricou. Mas temos de ter um olhar mais abrangente e entender que o que aconteceu e vai continuar a acontecer, senão em Reguengos, noutros lares pelo país fora, tem a ver principalmente com o lugar que a chamada “terceira idade” ocupa hoje não só em Portugal, mas na grande maioria dos países europeus.  Ou seja, com o valor social que as sociedades europeias atribuem a este grupo etário.

E na verdade, o que constatamos é que esse valor vai diminuindo em directa proporção ao aumento do seu peso demográfico em sociedades que não fazem filhos… Todos os demógrafos são unânimes: a tendência cada vez mais acelerada nos países europeus é a inversão da pirâmide demográfica, ou seja a diminuição progressiva do número de jovens relativamente ao número de pessoas mais velhas, graças também aos avanços da ciência médica. E com isso vem o que eu designaria por uma espécie de ressentimento, consciente ou não, contra uma camada social considerada um peso para a segurança social, improdutiva e de alguma forma parasitária…

Esquece-se assim, que na sua esmagadora maioria estas pessoas trabalharam uma vida inteira, contribuíram de forma diversa para as suas sociedades e… fizeram mais filhos. Filhos para quem, demasiadas vezes, os pais ou avós são um peso que atiram para essas antecâmaras da morte que são muitos lares, e que apenas se lembram deles quando revestem alguma utilidade para tomar contas das crianças ou como recurso financeiro.

Não generalizo e sei que nem sempre a realidade é assim tão negra. Também sei que hoje a vida da grande maioria dos casais jovens é difícil, partilhada entre o trabalho e a educação dos filhos em sociedades, como a portuguesa, onde os apoios irrisórios aos jovens pais convivem com o apelo desenfreado ao consumo. Mas as tendências, por muito científicas que sejam, são reversíveis mesmo que seja a longo prazo. Com uma condição: que sejam adoptadas políticas que favoreçam a natalidade e que esta não dependa dos meios disponíveis, mas da vontade dos casais.

Numa Europa cada vez mais despovoada, a França ainda é uma excepção. Embora em perda, continua a ser o país com maior natalidade da União Europeia a que não é alheia a política de apoio financeiro do Estado e as Écoles Maternelles a partir dos dois anos de idade. Criadas pelo Estado em 1880, mantêm-se até hoje. Pública, gratuita e laica, esta instituição abrange praticamente 100% das crianças a partir dos 3 anos. A imigração é certamente também um factor significativo para a natalidade. Em contrapartida, em Portugal a taxa de natalidade é a quarta mais baixa da União Europeia e a população tem vindo a diminuir sucessivamente. Mas esta tendência pode ser revertida, se houver vontade política e um planeamento a longo prazo.

Em síntese, e voltando ao ponto de partida: o esclarecimento do que se passou e passa em Reguengos e noutros lares é obviamente indispensável. Mas que sirva como forma de corrigir e alterar o que está mal e não como arma de arremesso político-partidário em que em grande parte se tornou. E se possível, que sirva também para se entender que uma sociedade que maltrata os seus mais velhos é uma sociedade sem raízes, nem memória.

Sugerir correcção