Baixa Pombalina: o fim anunciado de uma classificação UNESCO

Pululam por todo o espaço lojas dirigidas a um turismo massificado, pouco interessado em compreender uma cidade histórica, invulgarmente rica no seu património, como o é Lisboa.

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Paulo Pimenta

A Lisboa Pombalina é a extraordinária resposta do urbanismo à catástrofe do Terramoto de 1755, lê-se no site da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC).

Classificada como Conjunto de Interesse Público (CIP), a Lisboa Pombalina tem, em larga medida, quase intactos o seu traçado ortogonal pombalino, a volumetria do edificado e a sua tipologia.

Apesar do seu inegável e incontestado valor patrimonial para a cidade de Lisboa e para o país, apesar da relevância internacional como tradução arquitectónica dos princípios do Iluminismo, a história e as várias equipas camarárias e tutelas administrativas não têm sido amigas da Baixa Lisboeta, facto comprovado pela classificação de Interesse Público, quando a merecida seria a de Monumento Nacional, o que teria tornado mais difícil a série de malfeitorias urbanísticas dos últimos anos que todos conhecemos. Por outro lado, a Lisboa Pombalina CIP está dividida em duas secções, uma sob um Plano de Pormenor e Salvaguarda (área I) e outra não, ou seja, uma dispensa a submissão a pareceres vinculativos da DGPC, outra não.

Para confundir ainda mais o povo, a candidatura UNESCO da Baixa Pombalina (assim designada no dossier de 2004) coincide geograficamente com uma candidatura paralela designada pomposamente, e só os deuses saberão porquê, Lisboa Histórica, Cidade Global, também esta condenada ao fracasso, por maioria de razão.

Políticas erráticas ao longo de décadas foram privilegiando a crescente ocupação da malha urbana pelo sector terciário e de serviços, ontem bancos, empresas e escritórios, hoje hotéis em larga escala; já os equipamentos culturais, esses já nem se contam pelos dedos de uma mão (simplesmente vergonhoso o que CML, DGPC e Assembleia da República deixaram fazer ao mítico Odéon, por exemplo, e o enredo patético em que está mergulhado o Olímpia).

Raras foram as medidas para tentar fixar a população residente. De quarteirões habitados, passámos a ter uma Baixa cada vez mais desertificada, com a instalação de comércio de marcas generalistas. Um passeio pela Rua Augusta é suficiente para se perceber a vulgarização daquela que foi pensada para ser a mais augusta das ruas da cidade. Ou o estado vegetativo a que chegou a Rua das Portas de Santo Antão, em que a nossa jóia das artes decorativas chamada Solmar é o melhor dos maus exemplos.

Pululam por todo o espaço lojas dirigidas a um turismo massificado, pouco interessado em compreender uma cidade histórica, invulgarmente rica no seu património, como o é Lisboa. Ficará o turista a saber mais sobre os encantos da sardinha portuguesa e do seu mundo fascinante, do que das aventuras e desditas do Convento de São Domingos ou da Baixa de Fernando Pessoa, de Bocage, do Grupo do Leão.

Dependendo do autarca de serviço, assiste o lisboeta, incrédulo, ao rufar de tambores para que a Baixa Pombalina seja declarada património da Humanidade. Para tão nobre fim, criaram-se comissões, editaram-se livros luxuosíssimos, destacaram-se técnicos. Importantes mobilizações de recursos e dinheiro, anunciadas em grande pompa e circunstância, cujo maior fruto foi colocar e manter este exemplar traçado urbano na lista indicativa que o governo apresenta à UNESCO. Em bom português: ficou a marinar, se é que não apodreceu por ultrapassar o “prazo de validade” – objectivo conseguido?

Embora exista uma bateria de diplomas e regulamentos que pretendem salvar a Baixa de arremetidas oportunistas de muitos especuladores e promotores, estas sucedem-se num regabofe mascarado de revitalização. Cunharam-se até novas expressões como “projecto-âncora”, “loja-âncora”, “evento-âncora”. Acontece com frequência, talvez para melhor ancorarem, a progressiva criação de uma série de derrogações às normas alegadamente existentes. Numa âncora acaba por se esconder sempre uma excepçãozinha.

Furaram-se prédios para instalar parques de estacionamento, e com estes cortou-se e desviou-se o fluxo de águas que põem agora em causa os alicerces do século XVIII, deram-se licenças a estabelecimentos de restauração que transformaram locais simbólicos e emblemáticos em verdadeiros bazares de feira, abriram-se vãos nos pisos térreos, acrescentaram-se espúrios nas coberturas, permite-se, com a maior das facilidades, que voem para o lixo portas ferradas, molduras de janelas, fachadas de azulejo, escadas interiores, estuques e tudo que cheire a velho. Mais, as alterações dos edifícios têm contribuído para os riscos que correm e o desaparecimento da evidência histórica de técnicas e soluções construtivas únicas.

É por isso notória a contradição, mais uma, entre o que se escreve e o que na prática a CML licencia e a DGPC permite. Em matéria de património, o invulgar é que se cumpram as regras delineadas para sua protecção.

É fácil, por isso, para quem quiser e tenha os cabedais, vir a instalar mais um hotel na Baixa de Lisboa. É o que pretenderá a firma Rottshire para o prédio da Confeitaria Nacional e da antiga ourivesaria Barbosa Esteves, ambas lojas centenárias, constantes da carta do património, em vias de serem classificadas individualmente. O projecto é um mimo de preocupação pela salvaguarda do pré-existente. Tectos Arte-Nova desaparecem, será destruída uma abóbada pombalina, o primeiro andar da Confeitaria Nacional deixa de o ser, aí tomarão o petit-déjeuner os turistas que ainda nos queiram visitar.

Esse prédio pombalino será remexido até às suas fundações, não ficando nada do original para memória futura. Afirmar, como afirma o promotor, que as lojas serão desmontadas e remontadas é como defender a recauchutagem dos locais com história. Além do mais, no caso da Ourivesaria, a coisa é mesmo caricata, pois ela é toda forrada a espelho e mármore, pelo que não será remontada mas feita de novo, ou seja, tratar-se-á de uma réplica.

A Baixa e o seu património não são sinónimos de produtos ultracongelados, retirados do seu contexto, armazenados para que, a seu tempo, venham a ser recolocados noutro espaço e noutra circunstância. Que haja quem peça para fazer o que lhe dá na real gana, não é o problema. O problema reside no facto de projectistas, autores, promotores saberem que, em matéria de património, o que dizem as normas é uma coisa, mas a prática é previsivelmente bem diferente. O que se prepara para aquele quarteirão marcante da Baixa e da vida da cidade é uma violação grosseira das boas práticas na defesa do património.

Infelizmente, não é exemplar único. Outros projectos, que devem ser reavaliados em toda a sua linha, têm na mira o magnifico prédio do Largo de São Paulo, talvez o mais próximo do original pombalino em toda a cidade, e um outro, o quarteirão do antigo Convento do Corpus Christi, na Rua dos Fanqueiros, este agravado pelo facto de ter sido classificado individualmente há poucos anos.

No diploma que rege a classificação da Baixa Pombalina como CIP pode ler-se: “Não são admitidas alterações à volumetria, morfologia, alinhamentos e cérceas, cromatismo e revestimento exterior dos edifícios sem fundamentação técnica específica”, devendo ser redigido um “relatório de caracterização das preexistências assinado por historiador de arte onde se avalie o impacto das alterações para o imóvel”.

No Plano de Pormenor de Salvaguarda há normas para todos os quadrantes, revestimentos, coberturas, métrica dos vãos, portas e janelas, anúncios e publicidade. À luz do Regulamento, ficamos com a sensação que não mexe na Baixa quem pode, mas quem respeita.

Defende, ainda, o legislador que “as disposições do Plano são vinculativas para as entidades públicas e ainda, directa e indirectamente, para os particulares”. Dito de outra forma, a margem de manobra para devaneios e outras manigâncias seria muito reduzida ou inexistente.

Nota: “salvaguarda”, de acordo com o dicionário, quer dizer, entre outros significados, a protecção concedida por uma autoridade. São seus antónimos descuido, ofensiva, precipitação.

Fizessem as autoridades competentes a boa escolha das palavras que conduzem à consequência prática de uma Baixa de Lisboa verdadeiramente salvaguardada, viva e acautelada no seu excepcional valor histórico e patrimonial.

Na expectativa.

Miguel de Sepúlveda Velloso, Paulo Ferrero, Bernardo Ferreira de Carvalho, Alexandra Maia Mendonça, Gustavo da Cunha, Jorge Pinto, Rui Pedro Barbosa, Ana Celeste Glória, Helena Espvall, Pedro Cassiano Neves, Virgílio Marques, Pedro Jordão, Carlos Boavida, Alexandre Marques da Cruz, Pedro Fonseca, José Morais Arnaud, Paulo Trancoso, João Leitão, Pedro Machado, Maria do Rosário Reiche, Pedro de Sousa, Maria João Pinto, António Araújo, Miguel Jorge, Fátima Castanheira, Paulo Lopes, Gonçalo Cornélio da Silva, José Maria Amador, Júlio Amorim, Anabela Rocha e Isabel Raposo de Magalhães (membros do Fórum Cidadania Lx)

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