Mãe e filha confinadas em quarto de hotel sem teste positivo. Governo Regional dos Açores obrigado a libertá-las

Inconstitucionalidade de confinamento obrigatório tinha sido decidida pelo Tribunal Constitucional em Julho. “É espantoso! Incrível! E um desrespeito enorme pelos tribunais, pela Constituição e até pelo Presidente da República”, indigna-se o constitucionalista Jorge Miranda, explicando que a provedora de Justiça pode agir e os deputados também.

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Jorge Miranda critica Vasco Cordeiro, presidente do Governo Regional dos Açores LUSA/TIAGO PETINGA

O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores ordenou, esta sexta-feira, a libertação de duas cidadãs espanholas, uma mãe e uma filha de nove anos, colocadas em quarentena numa unidade hoteleira na ilha de São Miguel por indicação da Autoridade Regional de Saúde. 

Esta decisão surge apenas duas semanas após um acórdão do Tribunal Constitucional, datado de 31 de Julho, que declarou a inconstitucionalidade do confinamento obrigatório que estava a ser aplicado na chegada ao arquipélago. Apesar desta decisão, as situações de confinamento nos Açores continuam. 

As habitantes de Barcelona tinham feito um teste à covid-19 com resultado negativo, mas, no avião, sentaram-se perto de uma pessoa que, veio a descobrir-se mais tarde, estava infectada com o novo coronavírus, factor que motivou o confinamento. Contactado pelo PÚBLICO, o Governo Regional não quis tecer quaisquer comentários sobre esta matéria. A situação não se restringe a estas duas passageiras. 

Na decisão judicial revelada através de um comunicado de imprensa, o Tribunal da Comarca dos Açores descreveu os dias passados no hotel pela mãe e criança. Eram constantemente vigiadas pelos funcionários para garantir que não saíam do quarto – com cerca de 25 metros quadrados –, tendo sido ainda impedidas de usar as partes comuns do hotel ou de realizar um passeio higiénico. Mãe e criança estavam obrigadas a fazer a limpeza do quarto de hotel e das suas roupas, detalha o tribunal. A menina de nove anos foi deixada sem qualquer brinquedo. Apenas tinha televisão e Internet para se distrair. 

Apesar de terem ficado em confinamento no hotel contra a sua vontade, as despesas de alimentação e alojamento foram imputadas às turistas, que tinham ainda de pagar quatro euros por cada deslocação dos funcionários de hotel ao quarto. Foi-lhes transmitido que estas despesas seriam reembolsadas, algo que, até esta sexta-feira, ainda não tinha acontecido.

O tribunal considerou que esta privação da liberdade foi desproporcional, defendo que as directrizes do Governo Regional e da Autoridade Regional da Saúde não são suficientes, à luz da Constituição, para legitimar a restrição de direitos fundamentais. A decisão assenta também no facto de não ter sido possível provar qualquer contacto de especial proximidade de mãe e criança com o passageiro infectado com covid-19.

Constitucionalista indigna-se com caso

O constitucionalista Jorge Miranda mostra-se indignado com a atitude do Governo Regional dos Açores: “É espantoso! Incrível! E um desrespeito enorme pelos tribunais, pela Constituição Portuguesa e até pelo Presidente da República, que é quem decreta o estado de emergência”, que deixou de vigorar no território nacional no início de Maio. 

Para este jurista, a solução pode passar por a provedora da Justiça, um grupo de deputados ou então o próprio Presidente pedirem aos juízes do Palácio Ratton que decretem, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do decreto regional que impõe este tipo de quarentena, já que o acórdão de 31 de Julho é insuficiente para proibir o governo regional de continuar a adoptar este procedimento. Caso não o façam, será preciso esperar que o Constitucional delibere no mesmo sentido sobre mais dois casos idênticos, após o que caberá ao Ministério Público requerer a tal declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. 

Jorge Miranda não entende como é possível as autoridades de saúde e o governo regional insistirem no erro, estando ainda por cima em causa um direito fundamental como é a liberdade de circulação.

Mãe e filha chegaram à ilha de S. Miguel a 7 de Agosto passado e dois dias depois foi-lhes dada ordem pelas autoridades para se fecharem no quarto de hotel, uma vez que no seu voo, a duas filas de distância, tinha viajado um homem infectado com covid-19. De início foi-lhes negado um novo teste ao coronavírus, com o argumento de que poderia ser demasiado cedo para detectar a infecção, uma vez que existe um período-janela entre o momento de contaminação e o de detecção que pode ser de vários dias.

Outros casos podem chegar à Justiça

Fonte do escritório de advogados que acabou por ser contratado pela progenitora para pedir ao tribunal a sua libertação imediata, a Mouteira Guerreiro, Rosa Amaral & Associados, conta que eram praticamente diários os telefonemas que a habitante de Barcelona recebia das autoridades de saúde a perguntar-lhe pelo estado de saúde, mas também a recordar-lhe que se abandonasse a unidade hoteleira estava a cometer um crime. As férias, que eram para ser de uma semana, foram prolongadas à força. 

“Como não lhes foi efectuado ulterior teste de despiste, contactaram a delegação de saúde de Ponta Delgada que as informou que seriam testadas apenas a 21 de Agosto, dia anterior ao termo final fixado para o isolamento”, relata a sentença que mandou libertar imediatamente mãe e filha. 

Acabaram por conseguir ser testadas no dia 12. Deu negativo. Seriam libertadas por ordem do tribunal logo no dia seguinte, após quatro dias de cativeiro. A advogada que as acompanhou conta que preferiram regressar do tribunal para o hotel a pé, em vez de apanharem um táxi, para desfrutarem das primeiras horas em liberdade. E conta que existe um casal também estrangeiro nos Açores que ainda se encontra na mesma situação e que tenciona recorrer igualmente à justiça para conseguir sair do cativeiro em que foi colocado. com Rui Pedro Paiva

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