Barroso defende criação de comissão para acompanhar a “orgia financeira” do fundo de recuperação

Ex-presidente da Comissão Europeia não pretende voltar à política activa nem em Portugal nem internacionalmente. Em entrevista ao Observador defende que Portugal deve mostrar esforço de transparência na aplicação dos fundos.

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rcl Ricardo Castelo NFACTOS

Portugal deve criar uma comissão parlamentar para acompanhar a aplicação e execução dos fundos europeus que vai receber para a recuperação económica e social da crise pandémica, defende o ex-presidente da Comissão Europeia Durão Barroso. E avisa que, mais do que uma “pipa de massa” – como classificou os 26 mil milhões do quadro europeu 2014-2020 para Portugal -, o envelope que aí vem é “quase uma orgia financeira”.

Em entrevista ao Observador, o também antigo primeiro-ministro recusa falar da situação política portuguesa e garante que não tenciona voltar à política activa, excluindo também qualquer candidatura à Presidência da República.

Além de considerar que o dinheiro que aí vem é suficiente, Durão Barroso vinca que a questão vai ser mais como o utilizar, por ser, “de facto, uma pipa de massa, quase que uma orgia financeira”. Por isso, e tendo em conta que a “capacidade de absorção” do dinheiro comunitário pelos Estados-membros é “muito variável” e que Portugal também não é o melhor nesse campo, é necessária “muita transparência”. Mas também “eficiência, capacidade administrativa para gerir e aplicar os fundos estruturais, nomeadamente da coesão”.

“Tive uma ideia, não sei se alguém quer pegar nela, que é haver na Assembleia da República uma comissão de acompanhamento de utilização de todos estes fundos. Nestas alturas, com estes desafios excepcionais, justifica-se uma ainda maior intervenção da Assembleia da República. Aliás, isso é uma ajuda ao Governo”, que só tem a ganhar com uma maior transparência, argumenta Durão Barroso. Que preferia ver uma comissão a priori do que uma futura comissão de inquérito para ver o que funcionou mal. “Talvez fosse bom fazer uma comissão agora para que não corra mal.”

Uma comissão destas serviria para o Governo mostrar aos portugueses onde e como o dinheiro está a ser gasto, mas também a Bruxelas e aos outros Estados-membros que “não há ninguém mais interessado do que Portugal na boa utilização desses fundos” e que os quer apenas para “promover, de facto, o desenvolvimento” do país.

Sobre o processo do pacote de ajudas europeu para combater as sequelas económicas, financeiras e sociais da covid-19, Durão Barroso considera que esta crise ajudou a União Europeia a reforçar os mecanismos de salvaguarda financeira dos países, nomeadamente com uma certa forma de mutualização da dívida ao ser a Comissão Europeia a ir aos mercados “levantar 750 mil milhões de euros em noma da UE e que vai pagar depois até 2058”.

“Nunca tinha havido nada de comparável. Não são apenas os montantes sem precedentes, é também a qualidade do tipo de instrumentos que agora é possível mobilizar”, aponta ainda Barroso que considera normais as dificuldades de entendimento entre os 27 países e até afirma que, se o Reino Unido ainda fizesse parte da UE, não teria havido acordo.

À pergunta quem e como se paga a fatia do dinheiro que é apenas emprestada, a resposta é mais difícil. Para além da taxa sobre o plástico não reciclável ainda não há mais soluções aprovadas – estão em cima da mesa uma taxa digital, outra do carbono, outra (bem mais difícil) sobre as transacções financeiras. Mas terão que se encontrar formas de aumentar os recursos próprios da UE ou a solução será aumentar a contribuição dos Estados, acrescenta Durão Barroso.

A pandemia também mostrou que a Europa deve implementar uma estratégia dos quatro D - desglobalização, diversificação, digitização e descarbonização – para recuperar da crise e preparar o futuro. Barroso defende que Portugal só tem a ganhar com a relocalização na Europa da produção de muitos sectores porque “tem condições de competitividade muito boas”, dando o têxtil como exemplo de fileira a explorar.

Entre outras matérias, Barroso fala de Angela Merkel sempre com rasgados elogios – dela diz ser “o líder mais respeitado e com mais experiência” da União Europeia – e admite que “não vai ser fácil” para quem lhe suceder estar à sua altura; sobre António Guterres, sobre quem diz que ajudou a eleger, com contactos informais junto de diversos chefes de Estado; ou até sobre Putin, com quem se reuniu dezenas de vezes quando liderava a Comissão Europeia. E fala também sobre política portuguesa, mas apenas para dizer que não tenciona candidatar-se a Presidente da República. Sobre o resto, silêncio.

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