Laura Carreira e Ana Rocha de Sousa competem em Veneza na secção Horizontes

Haverá dois filmes portugueses na 77.ª edição do Festival de Veneza, que decorre de 2 a 12 de Setembro: a longa-metragem Listen, de Ana Rocha de Sousa, formada pela London Film School, e a curta-metragem The Shift, micronarrativa avassaladora de Laura Carreira, a viver em Edimburgo, sobre o trabalho e a precariedade.

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Laura Carreira, 26 anos; Ana Rocha de Sousa, 41 anos

Uma “cineasta europeia”, assim se define Laura Carreira, 26 anos, esta manhã anunciada como uma das presenças portuguesas em competição na secção alternativa Horizontes da 77.ª edição do Festival de Veneza, com a curta-metragem The Shift. A realizadora vive há oito anos em Edimburgo, na Escócia, onde se licenciou em Realização de Cinema, e está obrigada neste momento à sua quarentena por ter visitado há pouco Portugal, onde fez um curso de escrita na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. A outra presença nacional este ano no Lido será a longa Listen, de Ana Rocha de Sousa, formada pela London Film School, 75 minutos cirúrgicos – disse o director da mostra, Alberto Barbera, ao anunciar a programação desta edição –​ sobre um casal de portugueses imigrantes em Londres a quem os serviços sociais pretendem retirar os filhos. É “cinema para o mundo”, diz-nos Ana, acrescentando que os seus filmes estarão onde estiver um assunto “de relevância tal” que ela não possa deixar de o tratar.

Nascida no Porto, as relações com o país de origem, e com o cinema feito no país de origem, são neste momento uma tentativa de narrativa para Laura Carreira. Algo ainda em construção. “Estou a tentar reconectar-me, da melhor maneira que consigo. A ideia sempre foi regressar a Portugal, mas é mais difícil do que pensava.” Não é possível aqui o que se consegue lá, assegura: trabalhar para poder pagar uma renda de casa (partilhada) e ter tempo para pensar e concretizar projectos cinematográficos. “Não consigo sobreviver só a realizar. A única maneira de tentar realizar filmes é ter um trabalho ao lado. Em Portugal isso é difícil.” 

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Esta parte da conversa foi desencadeada, dando depois origem à assunção en passant (mas nada casual) de Laura como “cineasta europeia”, porque lhe perguntámos se um filme como The Shift podia ter sido engendrado, sentido, concretizado, desta forma em Portugal. É que se a preocupação com a precariedade e com o mundo do trabalho (como numa premiada curta anterior, Red Hill, de 2018, que foi elogiada, por exemplo, pela revista Sight and Sound) é, mais do que nunca hoje, global  Laura sustenta até que qualquer pessoa que trabalhe em cinema, ainda por cima num mundo a braços com a pandemia da covid-19, sabe em primeira mão o que isso é –, há em The Shift, filme a que o PÚBLICO teve já acesso, a inescapável verdade de uma ficção de Ken Loach: na relação com os actores/personagens, na forma de trabalhar a narrativa e os gestos em filigrana, sem um grama de gordura, e assim fazer deflagrar a emoção que se espraia e nos atinge irreversivelmente. A micronarrativa, com os seus tempos, desagua numa experiência ampla, avassaladora: a partir do mundo tal como o conhecemos hoje, lembramo-nos do mundo que conhecemos antes. Não chegam a ser dez minutos de filme e estava tudo escrito em oito ou nove páginas de guião, resultado de muita observação comportamental, revela Laura.

Concisão exemplar, evidencia linhagem. The Shift: uns momentos no supermercado com Anna, o cão deixado lá fora, os gestos dela lá dentro, as suas escolhas e desejos, que nos dizem da sua vida sem que o filme gaste uma única palavra. Depois, o telefonema que recebe: o seu turno de trabalho foi cancelado. O emprego desaparece, o mundo vacila. Tudo, da actriz à câmara (pièce de sistance aqui...), recebe as ondas de choque de algo que, no preciso momento em que o sentimos, percebemos que vinha sendo preparado. Anna é entregue ao abandono (como a personagem de Red Hill, curta sobre o último dia de um segurança antes da reforma). E o cão também.

Laura dirá que faria este cinema em Portugal. Porque lhe interessa “dar visibilidade aos problemas de vulnerabilidade das pessoas  mais existencial no caso de Red Hill e mais laboral em The Shift  que são invisíveis e que nem os laços familiares nem as redes de apoio conseguem alterar”. Mas também admite que há aqui uma escola. Assume o seu gosto, evidentemente, pelo cinema de Loach (e também pela obra dos irmãos Dardenne e por A Lei do Mercado e Em Guerra, de Stéphane Brizé). Explicita que quando chegou ao Reino Unido não imaginava “que as condições de vida fossem tão difíceis”, o que a fez sintonizar-se com um mundo. A fantasia no cinema nunca a interessou, de resto. “Há demasiados problemas para me ocupar com a fantasia.” E o cenário ajudou: a Escócia, “mais aberta” do que a Inglaterra. “As pessoas querem saber de nós, das nossas histórias”. Depois, durante os estudos, foi puxada para o documentário. “Apaixonei-me.” Então porquê a ficção? “Queria filmar pessoas no seu espaço de trabalho e isso é muito difícil, porque há sempre uma espécie de suspeita quando aparece uma câmara de cinema. Perguntam: ‘qual é o argumento?’, ‘o que está a querer dizer?’. E as histórias são, assim, impossíveis de contar. Porque há muita culpa das empresas. De outra forma uma fábrica não teria problemas em ter uma câmara de cinema lá dentro.”

A história de The Shift começou por um fait-divers, tal como a história de Red Hill foi filmada no espaço deixado vago por um homem que realmente se reformara. Foi um vídeo partilhado na Internet, uma imagem que “ficou sempre” com Laura: “Uma pessoa que abandonara um cão, o que levou a comentários muito feios sobre ela. Mas nem sempre controlamos o que nos acontece. Alguém sabe quem são essas pessoas? Eu queria saber.”

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A escrever já a sua primeira longa-metragem, sobre a experiência de uma imigrante portuguesa no Reino Unido, está motivada para se deslocar ao Lido, naquela que será, entre 2 e 12 de Setembro, a primeira edição física de um festival de cinema a realizar-se durante esta pandemia. “Vamos! Quero estar presente num festival que está a querer abrir a temporada cinematográfica.”

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Listen, de Ana Rocha de Sousa

Por sua vez, Ana Rocha de Sousa, 41 anos, já fez a sua longa sobre uma experiência de imigração, esta que daqui a um mês competirá em Veneza. Listen (que o PÚBLICO não viu ainda) é uma co-produção entre a Bando à Parte de Rodrigo Areias e a Pinball London, com Lúcia Moniz e Ruben Garcia. Um dia deixou tudo, explica-nos, a sua carreira de actriz e a sua aprendizagem em Belas Artes, para partir do zero, juntar tudo, a fotografia, pintura, a representação, para se reinventar com o cinema e contar as suas histórias. Tal como Laura, era mais difícil fazê-lo “aqui”. E Ana diz que percebeu o que queria fazer enquanto realizadora quando Mike Leigh um dia apresentou uma curta documental que ela tinha feito na escola, um filme sobre uma lavandaria na zona Este de Londres. Sem exagerar no name-dropping: Ken Loach também se atravessa no caminho de Listen. Não que tenhamos visto o filme. É o que dizem a Ana as pessoas que o viram. É o contexto, a evidência irrecusável da realidade e do documento. Ela exemplifica com a brincadeira de um amigo: “Aqui não há um filme que não tenha uma cozinha.”

Ainda sobre o contexto: dizendo-se ela uma pessoa “da pausa, da observação e do ficar”, com uma tendência poética, suspendeu isso tudo no storytelling de Listen. Um filme de atrocidades”, define, que nasceu da urgência, sobre “os buracos que a justiça deixa para a injustiça”. Um filme também produto de um choque de cultura(s), a portuguesa e a britânica, um filme sobre a solidão, um filme sobre Londres, local de passagem onde antes do “olá” já quase se diz “adeus”. Coisa, diz ela, tão triste e tão bonita.

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