Amália “é a voz de todos nós”?

Entre um nacionalismo doentio e eugenista e um desprezo pela Pátria, o meio-termo é, como em quase tudo, a melhor virtude.

Andava no 9.º ano e a maravilhosa professora de História Maria do Céu Tostão pediu-nos para escrevermos o que na altura me parecia impossível e que, mesmo hoje, considero das tarefas mais complexas que alguma vez enfrentei. Tínhamos de definir, em não mais de dez linhas, o que significava ser Português.

Julgo que na altura aludi aos Descobrimentos, a gostar de comer um bom bacalhau, a sermos pouco reivindicativos e a termos praia e sol. Típico para um miúdo dessa idade. Mas esta coisa tem-me ficado aqui no fundo do cérebro, naquela gaveta onde vamos acumulando perguntas sem resposta. E o tramado é que, aos 43, ainda não tenho uma resposta que me agrade. Creio, agora, que ela não existe, ou melhor, apenas há aproximações, como quando Agustina escreveu que “o Porto não é um lugar, é um sentimento”, o que se aplica a todo o país.

Entre um nacionalismo doentio e eugenista e um desprezo pela Pátria, o meio-termo é, como em quase tudo, a melhor virtude. Felizmente, nos últimos anos, esbateu-se a ideia de que falar em amor à Pátria é coisa de direita reaccionária e monárquica. Aqui reside uma das coisas que me irritam em Portugal – e não só –: se alguém se reivindica de um espectro político, tem de caber como uma luva em fórmulas pré-fabricadas. Um comunista tem de ser pobre, um militante do BE tem de ser drogado. No bloco central, atenta a plasticidade exigida pelo domínio do poder, a paleta é mais diversificada. Como se o amor à terra onde nascemos e às suas gentes fosse monopólio da direita ou a preocupação pelo outro fosse coisa de esquerda.

Muitos conhecidos confessam-me não sentirem especial gosto em serem Portugueses. São-no por razões legais, mas afirmam-se “cidadãos do mundo”. Encantado e, aqui entre nós, é trendy dizer isto. Eu sempre achei que povos com a História do nosso são dotados de especificidades; que um tecido social, económico, cultural e moral com quase 900 anos de História não podia deixar de segregar características díspares de outros, sem que isto signifique que sejamos melhores ou piores. Não será por acaso que as lentes dos estrangeiros são, desde a Antiguidade, os retratos mais perfeitos. Nenhum deles é totalmente objectivo, como nenhuma opinião o é. Mas o afastamento do objecto de estudo é, em regra, um relato mais fiel da realidade. Uma formiga vista à lupa ocupa todo o nosso campo visual.

Vem isto a (des)propósito de Amália, ou melhor, do que se tem projectado na fadista. Ninguém duvida que o Estado Novo a erigiu em símbolo que ela compreensivelmente não enjeitou, como se sabe que a transição democrática, descontados lamentáveis episódios de afastamento da nossa diva, a trouxe de novo às comendas e homenagens. Diz-se que “todos nós temos Amália na voz e [que] temos na sua voz a voz de todos nós”. Trata-se de um estereótipo e o fado não é a mera lamúria, a aceitação resignada do sofrimento, a história “de faca e alguidar”, o elogio da alegre pobreza. A dita “canção nacional” tem provado ser capaz de se adaptar e aí temos tantas e tantos fadistas que inovam diariamente o que é, talvez, um dos produtos mais perfeitos do que somos: uma grande misturada de árabes, normandos, visigodos, negros. Uma mistura que perpassa a bacia do Mediterrâneo e que faz dos Portugueses impenitentes seres de miscigenação e encontro de culturas. É isto que mais me orgulha em ser luso e também por esta razão acho absolutamente incompreensível que muitos sejamos xenófobos e racistas.

Quando “a gaivota” voa e o “povo talha com o seu machado” a “casa portuguesa”, não é só a Mariquinhas que assome à janela – são “segredos que nem às paredes confesso” e uma “estranha forma de vida” que retrata um povo. É esta “estranha forma de vida” que nos faz suspirar por um passado glorioso que não volta, mas também achar que um qualquer D. Sebastião (em geral pelo menos com tiques autoritários) voltará do limbo eterno e restaurará a Pátria das garras dos Filipes.

Acordemos para a vida: seja com o plano de António Costa Silva com o qual concordo nos traços gerais, seja com outro, esvaziada (momentaneamente?) a bolha do turismo, é altura de Portugal entender que nenhum Estado o é de verdade quando não se dota de um bom aparelho produtivo, agora tecnológico e de ponta, quando quase tudo é importado e nos transformamos num rectângulo de serviços não diferenciados. Do mesmo passo que nunca entenderei como sectores estratégicos para a soberania, como a electricidade, a água, os transportes, são sempre – supostamente – mais bem administrados por privados. Bem sei que o problema não é só nosso e que a Amália não era política, mas uma inexplicável inquietude que os seus biógrafos nela identificam deve ter-se perdido na transmissão genética. “Acordai!”, apetece gritar com Lopes-Graça quando, em aulas, se deixa o território seguro da “matéria” e se apela ao espírito crítico, à construção cívica e às soluções alternativas. Acordemos “os nossos heróis que dormem nos covais”, na letra de José Gomes Ferreira. Como Cassius atirou a Brutus, pela pena de Shakespeare (“Júlio César”), “a culpa, meu caro Brutus, não é das estrelas, mas nossa, que somos seus inferiores”.

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