A pandemia transformou a Marcha LGBTI+ de Lisboa numa rede de apoio

A organização da marcha tem estado a usar o dinheiro que tinha para socorrer os mais aflitos e vai lançar campanha de angariação de fundos para continuar esse trabalho.

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Reuters/KEVIN MOHATT

Este mês não houve marcha LGBTI+ pelas ruas de Lisboa, como aconteceu nos últimos 20 anos. O dinheiro doado para a fazer foi canalizado para montar uma rede de apoio a membros da comunidade e de outros grupos minoritários. O manifesto, divulgado este domingo, revela como a crise de saúde pública os atingiu de modo particular.

A marcha chegou a estar agendada para dia 20 de Junho. Atendendo à pandemia de covid-19, a organização percebeu que teria de a desmarcar. Havia que encontrar outro caminho. Auxiliar os mais aflitos afigurou-se-lhe a melhor maneira de honrar o espírito da marcha, explicou Helder Bértolo, presidente da Opus Gay, que faz parte da organização.

Este domingo faz 50 anos que se realizaram as primeiras marchas do orgulho gay, em Nova Iorque, Los Angeles, São Francisco e Chicago, a assinalar o primeiro aniversário das revoltas de Stonewall. E 20 que houve a primeira marcha em Lisboa (a que pouco a pouco se foram juntando iniciativas congéneres noutras partes do país).

O manifesto, que é costume ler-se no final de cada marcha, faz com que este seja não só um momento de festa, mas também um momento de acção política. O deste ano foi este sábado gravado por Larissa Belo, Alice Valente e Delso Batista, vincando o carácter interseccional da luta LGBTI+. “Tem muito a ver com a resposta dada durante a pandemia”, resume Helder Bértolo.

Na família e fora dela

O documento atravessa as várias áreas da vida. Lembra a “discriminação, a rejeição e a violência familiar” a que muitos jovens LGBTI+ estão sujeitos, o que pode resultar em expulsão ou permanência num ambiente hostil. Tudo isso se adensou durante o confinamento. O mesmo aconteceu com o isolamento já prevalente entre os mais velhos.

Em tempo de pandemia, as discriminações no trabalho agravam-se “com a subida desproporcional dos despedimentos, a diminuição de rendimentos e a dificuldade de acesso a apoios laborais”. E isso torna “a crise da habitação” ainda mais difícil de enfrentar.

No estado de emergência, “os hospitais cessaram a marcação de consultas de acesso à transição a novos utentes” e nem sempre “foi assegurada a continuidade do processo clínico em regime de teleconsulta”. “A Direcção-Geral da Saúde não disponibilizou informações relativamente aos locais onde seria possível continuar a fazer-se a administração de injectáveis.”

Entre os vários problemas assinalados está também “o acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) durante este período de emergência”, que “foi gravosamente condicionado”. “Temos conhecimento de pessoas que, por pouco, não ficaram sem acesso à IVG dentro dos dias permitidos por lei”, referem, lembrando que a lei que regula estas matérias “mantém a sua redacção sobre ‘mulheres grávidas’, criando entraves legais, por exemplo, a pessoas com útero que tenham ‘homem’ no seu marcador legal de sexo”.

Os activistas sustentam ainda que os apoios das juntas de freguesia para “pessoas com dependentes consideram exclusivamente laços de sangue”. “As famílias da comunidade LGBTI+, e de outras comunidades minoritárias, são muitas vezes formadas por laços afectivos, de coabitação e de ajuda mútua. Não havendo ligação ‘de sangue’ ou vínculos legais, deparamo-nos sistematicamente com a nossa exclusão de diversos apoios.”

Novo paradigma

Havia cerca de cinco mil euros angariados em anos anteriores para a marcha. A organização deu parte a redes já montadas – uma de apoio a trabalhadores do sexo, outra a comunidades ciganas, outra a comunidades migrantes e outra a pessoas trans, não binárias, intersexo. E montou uma rede própria. A esta iniciativa, a que se somam eventos online, chamou “continuamos a marchar”.

Os voluntários esforçam-se para prestar apoio de pares, adiantar verba para transporte, alimentação, medicamentos, renda, encaminhar para entidades com capacidade de resposta mais duradoura. “Temos recebido muitos, muitos, muitos pedidos”, afirma o presidente da Opus Gay. Ainda não dá para parar. “Este ano a marcha começou [em Maio] antes do mês do orgulho e vai prolongar-se para lá dele. Vamos lançar uma campanha de angariação de fundos.”

Parece-lhe que se abriu um novo paradigma: o movimento não tem de servir só para celebrar conquistas e reivindicar direitos, também pode impulsionar ajuda mútua, o que implica uma aproximação da comunidade, neste esforço de angariação de fundos e de trabalho voluntário. E julga simbólica a extensão a outras minorias, em particular a cigana. Será um passo para combater a ciganofobia dentro da comunidade LGBTI+ e a homofobia dentro das comunidades ciganas?

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