Os dois partidos da Saúde

A figura de Sistema Nacional de Saúde não visa outra coisa senão captar os serviços públicos para a lógica de mercado. O SNS ficaria diluído nesta figura organizacional e financeira.

Eles passaram a existir a partir do momento em que, em 15 de Setembro de 1979, foi a aprovada a Lei do Serviço Nacional de Saúde. Desde essa altura, sobretudo alguns sectores profissionais acantonados na Ordem dos Médicos, desenvolveram uma intensa oposição à criação daquele serviço público. Esta oposição foi longa e só recentemente, a partir de 2009, na passagem dos 30 anos da criação da aprovação da lei de 15 de Setembro, nas instalações da Ordem dos Médicos, é que o choque frontal desta instituição com o SNS começou a ter outros contornos, aceite nuns casos, tolerado noutros.

O crescimento do sector privado da sua saúde, sobretudo com a construção de dezenas de hospitais em todo o território e tendo como principal impulsionador o ministro da Saúde do governo liderado por Durão Barroso, veio dar outro impulso ao que, nunca tendo desaparecido, estava adormecido, e aparentemente o SNS tinha conquistado o seu lugar com a implantação em todo o território nacional de prestação de cuidados acessíveis a toda a população. O desenvolvimento dos cuidados de saúde primários e hospitalares, a par do recrutamento dos profissionais indispensáveis para o seu funcionamento, veio dar estabilidade suficiente ao serviço público para o seu funcionamento pleno.

No entanto, a passagem pelo governo do então ministro de Durão Barroso veio animar as intenções de todos quantos viam no sector da saúde uma oportunidade de criação demais valias, principalmente na prestação de cuidados hospitalares em ambiente privado. A criação da Administração Portuguesa da Administração Privada, com fortes ligações à Confederação da Indústria Portuguesa, representa o culminar das ambições desses sectores. A partir dessa altura, o sector passava a ter uma organização que projectava o seu apoio e influência a todos quantos, com maior ou menor convicção passaram a manifestar as suas opções. Com esta institucionalização ficou consumada inequivocamente a divisão do sector em dois partidos: os defensores do Serviço Nacional de Saúde e aqueles que embora com um longo percurso nos serviços públicos nunca se tinham dado por vencidos, passando a defender, com uma retórica mais ou menos ambivalente, nuns casos, a existência de um Sistema Nacional de Saúde.

A figura de Sistema Nacional de Saúde não visa outra coisa senão captar os serviços públicos para a lógica de mercado. O seu objectivo, simultaneamente com a apropriação da gestão clínica dos hospitais públicos, é promover a circulação dos doentes indistintamente nos dois sectores, tendo como principal financiador o Orçamento do Estado. O SNS ficaria diluído nesta figura organizacional e financeira, contribuindo com os seus recursos, a sua experiência e as suas competências, mas passando a ser um parceiro menor dessa organização, embora passasse o principal contribuinte e mais importante fonte de rendimentos do sector privado. A gestão do risco de quem está estabelecido no mercado era transferido para o Estado, e quem tinha investido nas organizações privadas incluídas no Sistema podia alimentar fortes expectativas de o capital investido poder vir a ser particularmente bem remunerado, com a garantia de o Estado estar sempre disponível, com maior ou menor atraso, a cobrir todos os riscos financeiros que pudessem surgir pelo caminho.

O partido do Sistema Nacional de Saúde esteve bastante activo durante a discussão da Lei de Bases da Saúde. Pode afirmar-se que perdeu esse combate apesar do volume de recursos que colocou na campanha em defesa de uma LBS ajustada aos seus propósitos. Passados meses desde a data de aprovação daquela lei, o partido do Sistema Nacional de Saúde regressa para procurar ganhar as posições que perdeu com a actual LBS. Nada melhor do que a regulamentação desta lei e o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde para obter ganhos de secretaria, naquilo de que não querem abdicar: a continuação e o aumento da venda de produção aos serviços públicos e a manutenção da sua influência nas instituições públicas tendo como suporte as parcerias público-privadas (PPP).

Irá ser entre destes dois partidos, o Serviço Nacional de Saúde e o Sistema Nacional de Saúde, que a regulamentação da LBS e do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde vão ser resolvidos. Se com o XX governo se tornou possível aprovar uma LBS que pela primeira vez tomou o partido do SNS, é grande a expectativa quanto à sua orientação sobre o que vai estar em jogo nos próximos meses. Sendo incerto o desfecho, o partido do SNS não deixará de apresentar os seus argumentos, bater-se por eles e contribuir para a criação das melhores condições para o desenvolvimento e melhoria do SNS.

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