Rui Rio e o Sermão de Santo António

Se entre a democracia e Ventura, Rio escolhe o segundo, arrisca-se a afundar as miudezas no espaço que não é o da direita clássica.

A comoção política sobre a vandalização da estátua do Padre António Vieira aqueceu o Santo António do nosso confinamento e a figura cresceu e encolheu com ela. Não foi a primeira estátua em Portugal a receber pichagens contra o colonialismo, mas pode ter sido a primeira a marcar a reconfiguração da direita “clássica” pela extrema-direita.

As opiniões borbulharam, desde os que desvalorizam a estátua para andarem à cata do movimento social, aos que a defendem, com base num consenso em torno da personalidade que há mais quem ponha em causa. Uma estátua é sempre a inscrição de um poder sobre o espaço e sobre o tempo, é certo, mas o que soma é o tempo de antena que o evento deu à extrema-direita. A pichagem é “naïf”, e aposta-se que não foi feita por nenhum jovem que tenha passado pelo exame de Português do 12.º ano com o Sermão de Santo António aos Peixes na cabeça, mas o ato é punível pelo Código Penal e o que soma é o espaço que o evento deu à extrema-direita para a capitalização do discurso híper securitário.

Chicão e Ventura viram o Padre manchado de vermelho e as crianças com corações vermelhos e esfregaram as mãos. A revisão da história é um dos veículos da batalha ideológica da extrema-direita, sublinhada nos textos programáticos do Chega e do CDS e por eles propalada de muitas formas. Onde eles cheirarem que a “missão evangelizadora de Portugal” no mundo pode ser atacada, ou cheirarem a ameaça da “hegemonia cultural da esquerda”, lá estarão como “milicianos” da Portugalidade, e defensores do Museu dos Descobrimentos, com perfis falsos no Facebook a convocar a violência, o racismo e a xenofobia, ou fazendo concursos de ideias sobre como a repressão e o policiamento salvam as estátuas das pessoas.

Nada de novo para quem ainda não se habituou a esta gente, que continuará a valer pouco se soubermos ao que andamos. A novidade é o PSD de Rui Rio ter escolhido o mesmo lado. É evidente que Rui Rio sabe que há racismo em Portugal. Sabe que, se for fazer um debate a uma escola para alunos/as do secundário, vai ver uma esmagadora maioria de “brancos”, tal como sabe que as empresas dos seus amigos são limpas por uma maioria de mulheres “negras”. A questão não é o que ele sabe, a questão é que ele quis que se soubesse que está do mesmo lado.

Ao arriscar esta colagem, o PSD afastou-se do centro político ao qual se tem agarrado com unhas e dentes, revelando mais medos do que certezas. Rio teme mais as sondagens (mesmo que pouco credíveis) que apontam a transferência de voto do PSD para o Chega, e o facto de Ventura ser criatura do PSD, do que as vozes do partido que não se reveem nas suas afirmações ou os 27 homens promotores da “superioridade da raça branca” e acusados de crimes raciais pelo Ministério Público.

Rio escolheu um lado, talvez por pensar que a evocação da lenda de Santo António lhe era dirigida: “Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava S. António? Pois continuai assim, e sereis felizes” (Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes)… Ou não. Se entre a democracia e Ventura, Rio escolhe o segundo, arrisca-se a afundar as miudezas no espaço que não é o da direita clássica.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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