Enquanto não alcances não descanses

Pode-se e deve-se descentralizar, desconcentrar e deslocalizar com imperdíveis vantagens para o País desde que o saibamos fazer sem se tornar um embaraço, isto é: sem aumentar a despesa pública, sem inflacionar o número de funcionários e sem gerar burocracia.

Do comunicado do Conselho de Ministros, de 4 de junho de 2020, sabe-se que foi aprovado o decreto-lei que altera a orgânica das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, consagrando a eleição indireta dos respetivos presidentes por um colégio eleitoral.

Há três conceitos que importa ter presentes: descentralização, desconcentração e deslocalização. Na descentralização, prevista no artigo 6.º da Constituição, trata-se de transferir poderes e recursos do Estado para as autarquias locais. Consiste, portanto, em novas atribuições e consequentemente em mais competências e meios entregues para a gestão dos interesses públicos locais. Estamos, pois, perante um pilar fundamental para o aprofundamento da Democracia. Dando assim igualdade de tratamento e mais oportunidades ao desenvolvimento de todo o território nacional e incentivando os cidadãos à participação cívica e política na administração dos seus próprios interesses.

Na desconcentração trata-se de aumentar as competências e os meios de atuação dos serviços locais ou periféricos do próprio Estado, como sejam as CCDR e outros, passando mais poderes de decisão para os órgãos regionais ou locais de cada estrutura hierarquizada. Aliás, a OCDE recomenda que a desconcentração possa ser uma fase inicial da descentralização. Nesta hipótese, sobretudo em sectores sensíveis, iniciar-se-ia o processo pela desconcentração de poderes do Estado para, a seu tempo, os descentralizar.

A Deslocalização é a transferência de serviços e organismos sediados na capital para outras cidades, a fim de diminuir a sua hipertrofia, mas valorizando e ajudando a desenvolver outras regiões para termos um país mais solidário e coeso. A sua concretização depende, antes de tudo o mais, de considerar simplesmente infeliz o “caso Infarmed”. E é necessário que estejamos a tratar de organismos autónomos e não de serviços de apoio direto ao Governo. Depois convém ter presente que é uma matéria que dispensa voluntarismos intempestivos, mas exige planeamento. Porque transferir para fora de Lisboa o que já ali está, mais os que já lá vivem há anos, não é uma decisão fácil. Avisado será, para o futuro, olhar primeiro para o País quando se tornar necessário instalar um novo serviço ou organismo, evitando de todo sobrecarregar ainda mais Lisboa e as suas gentes.

A descentralização não se confunde, portanto, nem com a desconcentração, nem com a deslocalização. E muito menos estas se confundem com secretarias de Estados plantadas à distância ou esporádicas reuniões do Conselho de Ministros no interior. Porque estamos a falar de assuntos que importa estudar, discutir, decidir e fazer acontecer a sério. E já vamos tarde porque é quase certo que com menos conversa e muito menos perda de tempo chegou Vasco da Gama à Índia.

Descentralizar primeiro nas células-base da autonomia local, no município e nas freguesias, entregando depois atribuições de maior dimensão à região parece-me igualmente um bom princípio. Porque também seria descentralizadora a criação de autarquias supramunicipais em todo o território do Continente, esquecido que fosse o estigma do referendo de 1998 e desde que para tal houvesse uma proposta concreta bem estruturada e consensualizada. E vontade política. Porque o que mais tem faltado é a força das convicções que lideram, quando o País mantém uma cultura centralizadora em que o poder, sediado em Lisboa, não aceita perder o monopólio de a todos fazer favores a troco de súplicas.

Pode-se e deve-se descentralizar, desconcentrar e deslocalizar com imperdíveis vantagens para o País desde que o saibamos fazer sem se tornar um embaraço, isto é: sem aumentar a despesa pública, sem inflacionar o número de funcionários e sem gerar burocracia. Bem pelo contrário - como tem dito e repetido sem descanso, desde há muitos anos, Rui Rio.

Miguel Torga, no Diário XIII, possivelmente depois de ter lido o ensaio de Camus sobre o mito de Sísifo, em forma de poema escreveu: “Recomeça… Se puderes, sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade. Enquanto não alcances não descanses (…)”. E assim será!

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