Lugares impossíveis

Não nego a beleza da calçada portuguesa. Também não nego que os buracos que, de três em três metros, resolvem surgir não facilitam em nada a vida da pessoa com deficiência. Melhor dizendo, não facilitam a vida a ninguém.

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Paulo Pimenta

É estranho, isto de ter acabado um curso no estalar de uma pandemia que parou o mundo e pôs tudo em perspectiva. A verdade é que, três anos depois de ter entrado em Comunicação Social, continuo sem saber qual o rumo que quero dar à minha vida.

Esperava, por esta altura, conseguir ver as coisas com mais clareza. No entanto, confesso que esta sensação de incerteza total não é a pior do mundo. Afinal, se voltarmos atrás no tempo, toda a minha vida foi assim. Mudanças de planos, soluções, alternativas: todas – ou quase todas – me levaram a lugares melhores.

Apesar de me sentir grata pelas conquistas e oportunidades que foram surgindo, enquanto escrevo este texto lembro-me de todas aquelas que foram por água abaixo quando, no caminho, apareceram barreiras impossíveis de derrubar.

Quem me conhece, sabe que o meu coração é meio lisboeta e, muito embora tenha um carinho gigante pela cidade que me viu nascer – Viseu  –, sempre tive a romântica (e bastante dispendiosa) ambição de tomar o primeiro café do dia no Martinho da Arcada, agarrada a um bloco de notas, na esperança de que Fernando Pessoa me trouxesse alguma da sua infinita e inigualável inspiração. Depois, seguiria para a faculdade e as letras encontrar-se-iam comigo com muito mais naturalidade.

Não aconteceu assim. Nem a parte do café matinal, nem a ida para Lisboa. E porquê? Obstáculos, dos mais variados tipos e em grande quantidade. O mais notório foi a falta de acessibilidade, esse grande bicho-de-sete-cabeças!

Não nego a beleza da calçada portuguesa. Também não nego que os buracos que, de três em três metros, resolvem surgir não facilitam em nada a vida da pessoa com deficiência. Melhor dizendo, não facilitam a vida a ninguém.

Degraus nos passeios, meu querido leitor, são capazes de tirar a autonomia a alguém que sempre lutou para a ter. Afinal, pense comigo, como pode uma scooter de mobilidade descer um degrau altíssimo (que, simplesmente, não serve para nada)? Pois é, não pode. Principalmente, se precisarmos que seja pequena o suficiente para caber na mala do carro, porque transportes públicos não seriam, claramente, uma opção.

São 20 anos de uma vida sobre rodas, a contornar barreiras que não deveriam sequer ser uma hipótese aquando da construção de qualquer infra-estrutura. E não quero a pena ou o título de “heroína” que muitos tendem a dar-me, depois de ouvirem este relato. Quero apenas que entendam que o normal é uma ilusão. Nada representa a normalidade ou a falta dela. Por tudo isto, é necessária uma visão mais alargada para perceber que as ruas, as lojas, os prédios têm de responder a todas as exigências do maravilhoso, nunca-igual, corpo humano.

Joguei pelo seguro. Fiquei por terras de Viriato que têm sido uma boa surpresa, apostando cada vez mais na inclusão. Na companhia e com a ajuda da família, com um curso praticamente acabado, estou feliz. Fiz amizades que não troco por nada, entrei para a dança e sinto que, mesmo não sabendo qual é o destino, estou no caminho certo. 

Estou grata, muito e sempre. Mas hoje, depois de me ter permitido pensar em como seria tudo, se a primeira opção tivesse sido uma realidade, não pude evitar gritar tudo isto, através da escrita.

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