O plano franco-germânico: travessia do Rubicão ou muito barulho por nada?

1. Travessia do Rubicão / Alea jacta est (Suetonius) ou muito barulho por nada (Shakespeare)? Estas duas notáveis frases que impregnam as profundezas da cultura europeia são um bom ponto de partida para uma discussão crítica sobre a União Europeia de hoje. A 18 de Maio de 2020 Angela Merkel e Emmanuel Macron surpreenderam muitos europeus. Apresentaram um ambicioso plano de recuperação para a economia da União, a qual foi seriamente danificada pela pandemia da Covid-19 em todos os Estados-Membros.

O plano teve um grande impacto na opinião pública europeia e nacional — talvez mais rigorosamente na opinião publicada. Especial entusiasmo gerou a parte relativa à constituição de um ambicioso fundo de 500 mil milhões de Euros destinado ao crescimento e à solidariedade. A proposta foi elogiada como uma ‘travessia do Rubicão’ feita por Angela Merkel: terá abandonado definitivamente a tradicional ortodoxia orçamental e oposição germânica à emissão de dívida conjunta pela União Europeia para financiar esse fundo.

É verdade que há razões para algum optimismo, mas há também (muitas) razões para prudência. A ‘travessia do Rubicão’ de Angela Merkel pode ainda acabar num caso de ‘muito barulho por nada’. As ambiguidades do enredo da peça de William Shakespeare ajudam a temperar o wishful thinking que perpassa a maioria das análises, num assunto onde um final feliz está ainda longe de garantido.

2. É necessário ler primeiro a declaração, coisa que, infelizmente, nem sempre é feita, pelo menos com algum cuidado na leitura dos detalhes e na apreciação da subtileza da linguagem usada. Num primeiro olhar, o texto da declaração franco-germânica parece confirmar plenamente a ideia de um ambicioso plano de recuperação da economia europeia pela envergadura das suas propostas. Indiscutivelmente, contém um sinal político importante pois vem das duas maiores economias da União. Mostra ainda — pelo menos na aparência pública — coesão do eixo franco-alemão.

Todavia, num segundo olhar e numa leitura mais atenta, fica-se com a sensação de estarmos perante uma declaração bastante genérica e especialmente vaga nos detalhes. É verdade que isso é mais ou menos normal neste tipo de declarações políticas. Mas não é nada inocente. Assim, permite várias interpretações quanto à forma de concretização do plano de recuperação europeia, com alcances muitos diferentes na prática.

Provavelmente, a ambiguidade foi deliberada para permitir uma ampla negociação e resultados finais muito diferentes. Todos poderão depois reclamar-se inspirados no plano agora apresentado, mas que muitos interpretam, com demasiada ligeireza, como apontando um único caminho possível: mais Europa no sentido mais integrador (ou federalizador) do termo.

3. Há um aspecto crítico particularmente importante na proposta franco-alemã, ao qual foi dada pouca atenção por prevalecer o já notado ambiente de (demasiado) entusiasmo para se fazer outra leitura mais cautelosa. “A França e a Alemanha propõem permitir à Comissão Europeia financiar essa recuperação [da economia europeia] através de um empréstimo obtido nos mercados em nome da União, sob provisão de uma base jurídica e em respeito pelos tratados, pelo quadro orçamental e pelos parlamentos nacionais” (ponto 2 da declaração).

À primeira vista, está aqui a base para se afirmar a ‘travessia do Rubicão’ pela Alemanha, sob o comando de Angela Merkel. Todavia, o realce, bem sublinhado na própria declaração franco-alemã, da necessidade de uma base jurídica e do respeito pelos Tratados Europeus na criação e financiamento desse fundo de 500 mil milhões de Euros toca num problema político-jurídico sério. Muitos subestimam-no pensando que são meros detalhes jurídicos. Mas não são e levantam fundadas dúvidas sobre os limites do enquadramento da ambiciosa proposta.

Como mutualizar a dívida no quadro dos actuais Tratados, quando o artigo 125.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia estabelece uma cláusula de não comunicabilidade das dívidas entre os Estados-Membros e os Estados-Membros e a União? Essa é uma questão para a qual teremos de esperar para ter uma resposta clara.

4. Para além das propostas genéricas já efectuadas para recuperar a economia da União Europeia — o que é a parte mais fácil — resulta evidente, pelo já exposto, que será fundamental perceber como será enquadrado legalmente o pedido de empréstimo feito pela Comissão (e se este não vai ser logo contestado). Mas não é só isso que falta saber de importante. É também necessário perceber como serão, na prática, repartidos os benefícios — e os encargos desse empréstimo — por todos Estados-Membros.

O plano franco-alemão é convenientemente omisso sobre tais aspectos pelo que, nesta altura, apenas podemos especular sobre o assunto. Pelos sinais políticos observáveis após a apresentação da proposta é (muito) provável que possam existir vários tipos de condicionalismos nos acessos aos fundos europeus. Assim, saber quais serão exactamente esses condicionalismos — ou seja, em que condições e prazos esses empréstimos e/ou financiamentos terão de ser pagos, ou se eventualmente se existirão verbas a fundo perdido e de que montantes — não é um mero detalhe. É uma questão central para se poder fazer uma avaliação fundada sobre o alcance da proposta.

Basta lembrar, por exemplo, que no Fundo Monetário Internacional (FMI), o princípio da condicionalidade é a verdadeira dor de cabeça de quem recorre a empréstimos internacionais, pelas medidas que têm de ser postas em prática, normalmente muito duras para a economia e a sociedade dos Estados que a eles recorreram. Veremos, por isso, nos contornos da condicionalidade, quais serão os reais limites da solidariedade europeia. Não serão ‘cheques em branco’ para gastar como bem entendam os governos nacionais e sem um preço a pagar.

5. Aspecto mais conhecido é a resistência de alguns Estados-Membros a qualquer forma de mutualização das dívidas na União. Aparentemente, parece até ser o único problema, o que, como já vimos, é uma percepção errada. Foi já apresentado um plano alternativo pela Áustria, Holanda, Dinamarca e Suécia, o qual, entre outras diferenças face à proposta franco-germânica, recusa a mutualização das dívidas para financiar programas de recuperação da economia dos Estados-Membros. À primeira vista está em rota de colisão com a proposta da Alemanha e da França e deveria irritar sobretudo Angela Merkel, por lhe travar a tão elogiada ‘travessia do Rubicão’. Mas tal como numa peça teatral deliberadamente ambígua nas suas possíveis interpretações, a política nem sempre é o que parece e talvez não seja bem essa a realidade neste caso também.

Angela Merkel, sem o assumir publicamente, claro, pode achar esse plano alternativo (muito) bem-vindo. Permite-lhe desempenhar um papel similar ao que teve na anterior crise da Zona Euro. Sem ter de fazer concessões assim tão grandes (como numa verdadeira mutualização da dívida, o que será sempre muito difícil de explicar aos eleitores alemães e se arrisca a criar novos problemas constitucionais), passará na imagem pública europeia por uma política responsável e europeísta. Para isso, Angela Merkel precisa de alguém que faça agora o papel de ‘polícia mau’ da ortodoxia orçamental, tal como que fizeram Wolfgang Schäuble — o Ministro das Finanças alemão durante a crise da Zona Euro — e também Jeroen Dijsselbloem, o anterior presidente do Eurogrupo, da Holanda. Nem Olaf Scholz (o actual ministro das finanças da Alemanha), nem Mário Centeno (o actual Presidente do Eurogrupo) parecem disponíveis para esse casting. Assim, está entregue a Mark Rutte da Holanda e a Sebastian Kurz da Áustria.

6. Tudo isto mostra a necessidade de prudência e de contrariar o wishful thinking existente num país aflito. Estamos no início de um longo processo até a crise económica provocada pela pandemia da covid-19 ser ultrapassada. A resposta europeia passará por um demorado e complexo processo negocial. Nele, os fundos e programas destinados à recuperação das economias mais afectadas pela Covid-19 interligam-se com as negociações do quadro financeiro plurianual 2021-2027. É esse orçamento de longo prazo que permite os fundos estruturais e os fundos de investimento a nível nacional, mas tem estado num impasse.

Há aí um sinal preocupante incontornável. Entre os contribuintes líquidos para o orçamento da União (9 dos 27 Estados-Membros), ninguém quis até agora pagar a totalidade da factura deixada pelos britânicos, para manter os níveis de despesa da União. Para além disso, se o plano franco-alemão avançar numa versão ambiciosa, a qual envolve (alguma forma de) mutualização da dívida e obrigações europeias (seja com o nome de eurobonds ou outro), são de antever importantes dificuldades político-legais.

Provavelmente só poderão ser superadas por alterações dos Tratados feitas com o apoio de todos os europeus. Resta saber se são politicamente possíveis tais alterações nesta altura. Fora disso, são antecipáveis, como já notado, duras batalhas político-jurídicas na Alemanha, mas também em vários outros Estados-Membros, de consequências incertas. Veremos se o optimismo inicial foi fundado e assistiremos à ‘travessia do Rubicão’ por Angela Merkel, ou se tudo acabará por se transformar num caso de “muito barulho por (quase) nada”, sem um final feliz como na peça teatral de Shakespeare.

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