Sem turistas, a Feira da Ladra reabriu quase vazia

Pouco negócio e feirantes a desistirem antes do meio-dia. No primeiro dia de desconfinamento da Ladra, a incerteza dos meses futuros é o que mais pesa.

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Daniel Rocha

Isabel fez como habitualmente. Chegou às 7h e montou a banca no sítio de sempre, à esquina do Jardim Botto Machado, ou de Santa Clara, que se vai enchendo de cães com o avançar da manhã. Tem à venda um rádio antigo, um faqueiro completo, um cabide de pé, um solitário livro, um aparador baixo e uma secretária. “Quando cheguei já havia aí alguns desses clientes que vêm sempre antes dos vendedores, para ver se apanham uma ou outra pecinha melhor.”

Quatro horas volvidas, o resumo não é animador. “Enquanto não houver cruzeiros e estrangeiros isto não anima”, diz Isabel, que não tinha grandes expectativas sobre a reabertura da Feira da Ladra. “Hoje só vim ver como é que paravam as modas.”

Durante a manhã paravam assim: muitos lugares vazios, clientela rarefeita. Tanto que, muito antes do meio-dia, vários feirantes arrumaram a trouxa e foram-se embora. Foi o que fez Sara, que tem uma banca na parte de cima da feira, onde vende peças de artesanato feitas por si. “Dependo muito dos turistas e o pior de tudo é que isto ainda se vai manter assim durante um ou dois meses”, antecipa.

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Para a reabertura das três feiras semanais da cidade (Ladra, Relógio e Galinheiras), a Câmara de Lisboa decretou o uso obrigatório de máscara, a disponibilização de álcool em cada banca, o distanciamento entre pessoas e a proibição de os clientes manusearem os artigos. As regras estão afixadas em vários locais do Campo de Santa Clara, mas pedir aos visitantes que não mexam nas coisas é utopia. Na Feira da Ladra vende-se todo o tipo de quinquilharia, louças, artigos para a casa, antiguidades várias, livros, postais, discos, sapatos, telemóveis obsoletos, ferramentas, roupas. O bom produto descobre-se vasculhando as caixas.

“Nós chegámos aqui e levámos com esta fisionomia de feira”, afirma Carlos Alberto, com posto na zona baixa do recinto, onde comercia velharias. Atrás de si há grades e fitas que a Polícia Municipal ali colocou para impedir o acesso à zona central da praça, de modo a evitar que se criassem aquelas ruelas estreitinhas entre bancas que caracterizam a feira. Os comerciantes foram distribuídos por outros locais. “Eu vendo aqui há 36 anos e mandaram-nos lá para trás”, indigna-se Fátima Cruz. “Deviam ter contactado os feirantes para combinar as coisas.”

Ali perto, nos lugares 18 e 19 do sector 2, como Manuel Esteves da Silva faz questão de precisar, ouvem-se também reparos à forma como a autarquia decidiu retomar a feira. “Fomos avisados por um colega. Se não fosse terem-nos mandado uma mensagem hoje não vínhamos, estávamos em casa”, diz. Emídio Anastácio, vendedor de roupa logo ao lado, corrobora: “Foi um cliente meu que me avisou de que ia haver feira.”

Carlos Castro, vereador da Protecção Civil, andou de manhã por ali acompanhado por fiscais, polícias e pessoas do seu gabinete, a quem alguns feirantes se dirigiram para reclamar ou fazer sugestões. Surtiu algum efeito, pois foi o próprio vereador que, minutos depois de conversar com Carlos Alberto, andou a arredar grades e fitas para tornar maior o espaço de circulação.

“Isto vai estar assim durante muito tempo”, afirma um fiscal, referindo-se aos muitos lugares vazios. Um homem, que tem licença de feirante ocasional, não compreende por que a câmara os impediu de voltar, permitindo-o apenas aos feirantes com lugar fixo. “Hoje a feira está vazia. Há só 20 ocasionais e umas centenas de fixos. Se tivessem confirmado com os feirantes se eles vinham, podiam deixar trabalhar os ocasionais”, opina, acrescentando que há dois meses que quase não tem rendimento.

“Já há aí muito colega a passar fome, não só desta feira mas de outras”, assegura Carlos Alberto, que na semana passada organizou um protesto para reivindicar o recomeço da Ladra. “Eu passei este tempo em casa e a ir ao supermercado comprar comida para pessoas que estavam com fome. Foi uma dor muito forte mesmo”, acrescenta Fátima Cruz.

Isabel, que se apresenta como “uma viciada da feira” que um dia meteu conversa com um homem e desde então, já lá vão 10 anos, não mais deixou de montar barraca no recinto, aproveitou o confinamento para vender peças na internet. “Durante estes dois meses vendi muita coisa através do Facebook”, relata.

Agora que o desconfinamento começou e vários feirantes vieram “ver como estavam as coisas”, nas palavras de Emídio Anastácio, preparam-se para meses de incerteza. “Esta feira vive do turismo. Não havendo turistas isto fica péssimo”, resume Luzia Ribeiro, outra feirante, que se prepara para se pôr ao caminho. “Já vimos como era, daqui a bocado vamos embora.”

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