“É a economia, estúpido?”: A Europa, a economia e o voto

Vários estudos têm demonstrado a crescente volatilidade dos eleitores no período da crise/pós-crise. A economia tende a ser um factor decisivo nessa alternância. Certo é que nos países da zona euro as decisões mais relevantes para o quotidiano são tomadas pelas instituições europeias, que não podem ser responsabilizadas pelo poder do voto.

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No dia das eleições legislativas, quando coloca o seu voto na urna, sabe que razões levaram a essa escolha? Alguns (muitos) votantes não marcam presença no acto eleitoral. Dos que comparecem à chamada há os que são fiéis aos seus partidos, independentemente do contexto político, económico ou social. Mas se todos fossem fiéis não haveria mudança política, ganhariam sempre os mesmos, eleição após eleição. Ora, não é esse o caso. Pelo contrário, os partidos enfrentam cada vez maior incerteza nas urnas, e o número de eleitores que muda o seu sentido de voto aumenta. Vários estudos têm demonstrado a crescente volatilidade dos eleitores no período da crise/pós-crise. Como resumiu um assessor de Bill Clinton na campanha de 1992: “É a economia, estúpido!”, sobre o factor mais importante para o desfecho eleitoral. Agora, a União Europeia pode estar a diminuir esse impacto da economia no voto, com consequências importantes para a qualidade da democracia. 

O desempenho económico — o desemprego, o crescimento (sustentável), o custo de vida, a convergência com outros países — importa porque é uma súmula dos avanços na qualidade de vida média do país. As eleições são por isso uma oportunidade para o eleitorado acertar contas com o Governo, avaliando a capacidade de gestão da economia por parte do executivo. O grande significado das eleições legislativas seria o de poder castigar os governos que tivessem falhado nessa performance, ou por outro lado premiar quem tivesse conseguido cumprir objectivos, ou até ir para além deles. Um momento fundamental de responsabilização dos políticos por parte do eleitorado. Essa capacidade de os eleitores conseguirem responsabilizar os governantes pelo passado é fundamental para dar sentido ao voto e garantir a legitimidade ao sistema político.

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A UE pode estar a diminuir o impacto da economia no voto, com consequências importantes para a qualidade da democracia DR

Para que as eleições tenham este significado, é preciso que os eleitores sejam de facto capazes de responsabilizar o Governo pelo passado recente do ponto de vista do desempenho económico. As questões que temos vindo a colocar na nossa pesquisa  são estas: será que o facto de a política monetária — e até a política fiscal — dos países da zona euro ser cada vez mais influenciada pelas instituições europeias, desde que se criou a moeda única em 2002, afecta as avaliações que os cidadãos fazem sobre o desempenho do Governo? Como é que podem funcionar os processos de responsabilização nos actos eleitorais nacionais à medida que se torna claro que a margem de manobra dos governos do ponto de vista económico diminui? De que forma reagem os votantes dos países mais afectados pela crise da zona euro ao perceber que o Governo está condicionado pelos critérios do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que obrigam a uma política de austeridade?

O momento em que estamos a fazer esta investigação é importante. O euro comemorou 20 anos em 2019, o que significa que os cidadãos vivem com esta nova realidade há algum tempo. Mas é claro que é sempre preciso um tempo de aprendizagem para que a nova realidade seja interiorizada, e isso depende da forma como os partidos e os media discutem o tema. Para os mais distraídos, a crise da zona euro, que começou em 2009 e se prolongou até 2014 sensivelmente, pode ter ajudado a tornar claro para onde pende o poder da política económica nos países da zona euro.

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O euro comemorou 20 anos em 2019 Reuters

Contudo, se já passaram dez anos desde a crise da zona euro, onde todas estas questões foram debatidas amplamente nos media, será que os cidadãos ainda recordam que a política económica dos Estados-membros está fortemente condicionada por decisões tomadas nas instituições europeias? Partimos desse pressuposto, visto que, desde 2009, as medidas que foram sendo tomadas para reformar a governança da zona euro foram no sentido de aumentar os poderes das instituições europeias, tal como a Comissão Europeia, o BCE, e o Eurogrupo, tanto através de mecanismos formais como informalmente. Pelo contrário, nenhuma medida visou dar mais margem de manobra aos governos. Assim, parece-nos que continua a ser uma questão muito pertinente.

Crises económicas europeias, eleições nacionais

Aliás, a forma como o Governo de António Costa (juntamente com outros países que mais sofreram com a anterior crise, como Espanha ou Itália) tem lidado com a presente crise de covid-19 atesta isso mesmo. Enquanto a resposta do ponto de vista sanitário tem sido gerida a nível nacional por cada país, do ponto de vista económico, todas as decisões dependem das instituições europeias. É assumido que, por estarmos no euro, o Governo tem pouquíssima margem de manobra para fazer frente à inevitável recessão económica, se quiser respeitar a médio prazo as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento a que obriga a pertença ao euro. Tudo o que puder ser feito a nível nacional depende de um consenso a nível europeu, e é essa luta que os governos dos países mais vulneráveis, como Portugal, Espanha e Itália, têm travado em sucessivos Conselhos Europeus, nos últimos tempos.

É claro que os governos da zona euro ainda conservam alguma margem de manobra fiscal e redistributiva. Há políticas que são nacionais, nomeadamente o orçamento e os impostos. Os governos continuam a definir quem fica com as fatias do bolo da despesa. Mas não deixa de haver constrangimentos europeus decisivos, a nível monetário e fiscal. Portanto, neste nebuloso novo sistema de governança, onde fica a responsabilidade pela economia que se pode atribuir ao Governo? E onde fica o significado verdadeiro que os cidadãos podem dar às eleições legislativas?

Economia e responsabilização política

Ora, é aqui que entra a pesquisa que temos vindo a desenvolver no âmbito do MAPLE. Ao longo dos últimos anos fomos desenvolvendo trabalho para testar em que medida quem os cidadãos responsabilizam pela situação da economia (Governo ou UE) tem impacto no peso que a economia tem nas suas escolhas eleitorais. No artigo “The integration hypothesis: How the European Union shapes economic voting”, utilizando dados de inquéritos pós-eleitorais realizados em 2009 em Portugal, Espanha, Grécia e Itália,  demonstrámos o seguinte: o peso das avaliações sobre a economia nacional na decisão de voto é menor entre os indivíduos que responsabilizam mais a UE pelo desempenho económico. Este artigo foi o pontapé de saída da linha de investigação inaugurada pelo projecto MAPLE, mas tinha a limitação de os dados terem sido recolhidos em 2009 quando a crise da zona euro apenas despontava. Mais recentemente, em 2020, publicámos outro artigo que procurou testar o mesmo argumento, mas usando mais dados, sobre Portugal, Espanha e Irlanda, em concreto inquéritos pós-eleitorais recolhidos em cada eleição de 2002 a 2016 nestes países. A generalidade dos eleitorados irlandeses, espanhóis e portugueses castigou os partidos de Governo a partir de 2009 — logo, o voto económico continua a funcionar depois da crise, até porque esta foi muito dura e os eleitores não tinham outra forma de exprimir o seu desagrado pelo desempenho económico. Mas também ficou demonstrado que os votantes que lêem jornais que dão maior cobertura à UE são menos influenciados pelo desempenho económico na sua decisão de voto.

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Em Portugal, Espanha, Grécia e Itália o peso das avaliações sobre a economia nacional na decisão de voto é menor entre os indivíduos que responsabilizam mais a UE pelo desempenho económico Yves Herman/Reuters

Consideramos este facto interessante. Sendo a UE, e ainda mais a União Económica e Monetária (UEM), um tema complexo, só os mais informados retiram ilações sobre as consequências desse aprofundamento da UEM para o significado das eleições. Mas tendo em conta a evolução da crescente transferência de poder económico para as instituições europeias, será provavelmente uma questão de tempo para que isso aconteça de forma mais generalizada.

A nossa investigação mais recente utiliza dados recolhidos em Janeiro de 2019 em inquéritos que realizámos na Alemanha e na Grécia. Nas últimas duas décadas, enquanto a Alemanha se afirmou como a maior potência económica do euro, a Grécia teve de pedir quatro bailouts e enfrentar uma enorme austeridade para se manter na moeda única. Queríamos compreender se as hipóteses que testámos nos estudos anteriores também se confirmavam nos países onde não houve crise económica.

Tanto na Grécia como na Alemanha, 60% dos inquiridos concordam que a UE é muito responsável pela política económica. Portanto, apesar de trajectórias tão distintas, tanto os gregos como os alemães entendem que a UE é influente na política económica dos países. No caso da Grécia, confirmámos aquilo que já tínhamos visto anteriormente. Isto é, quem tem mais informação política incorpora o facto de a UE ser mais influente na política económica e tende a usar menos as percepções económicas no seu sentido de voto. Os que têm menos informação política continuam a usar as percepções económicas, mesmo quando consideram que a UE é muito responsável pela política económica.

Agora, curiosamente ou talvez não, na Alemanha passa-se exactamente o oposto. Isto é, vemos que os alemães que têm mais informação política, e reconhecem o facto de a UE ser mais influente na política económica, tendem a usar mais as percepções económicas para determinar o voto. Para os alemães com menos informação política, considerar que a UE é muito responsável pela política económica não altera a importância das percepções económicas no voto.

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Tanto na Grécia como na Alemanha, 60% dos inquiridos concordam que a UE é muito responsável pela política económica Kostas Tsironis/Reuters

Isto sugere que o processo de integração europeia, e em particular a importância que a UE assumiu na política económica, não tem necessariamente o mesmo efeito em todos os Estados-membros.

Não conseguimos demonstrar que isso se ficava a dever ao facto de os gregos acharem que o seu país não tem influência na UE, ao contrário dos alemães. No entanto, cremos que o desequilíbrio de forças no momento de tomar decisões na UE poderá ter um impacto na forma como os cidadãos votam.

“A Europa será forjada nas crises”, disse Jean Monnet, um dos pais fundadores da União Europeia, “e será a soma das soluções adoptadas para responder às crises”. Esta pesquisa que temos levado a cabo tem muitas questões pertinentes para esta nova crise da covid-19 e lança pistas sobre a forma como a política económica europeia pode estar a ter não apenas um efeito assimétrico do ponto de vista económico mas também político entre os países-membros. Quem será responsabilizado pela nova crise económica que já se adivinha? Como é que os votantes podem exprimir o seu desagrado votando nas eleições legislativas se sentem que a política económica é europeia? Importa perceber como a UE influencia a forma como as pessoas vêem as suas escolhas políticas de modo a preservar um princípio fundamental da democracia: a responsabilização dos governantes.


Marina Costa Lobo e Roberto Pannico, investigadores em Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, membros do Projecto ERC MAPLE, www.maple.ics.ulisboa.pt


  

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