Regina Duarte desvaloriza ditadura militar: “Sempre houve tortura. Porquê olhar para trás?”

Actriz e secretária da Cultura do Brasil abandona entrevista à CNN acusando os entrevistadores de “falta de respeito”. Antes, admitiu começar a reagir em público à morte de artistas, “se isso é importante para as pessoas”.

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A responsável afasta a hipótese de se demitir porque considera ter a confiança de quem a rodeia LUSA/Joedson Alves

A secretária da Cultura do Brasil, a actriz Regina Duarte, desvalorizou as perseguições, tortura e mortes que ocorreram durante a ditadura militar no país e disse que a evocação desses tempos por jornalistas e pelos seus críticos é sinal de que “estão cansados por carregarem um cemitério nas costas”. Numa entrevista à CNN Brasil, na quinta-feira à noite, a responsável pela pasta da Cultura disse também que admite passar a lamentar em público a morte de personalidades da área, “se isso é importante para as pessoas”.

Durante a entrevista, conduzida pelo jornalista Daniel ​Adjuto e apoiada em estúdio por outros dois pivôs da CNN Brasil, Reinaldo Gottino e Daniela Lima, a secretária da Cultura do Brasil mostrou-se incomodada com perguntas sobre as críticas de que tem sido alvo por parte de colegas de profissão e de outros membros do Governo do Presidente Jair Bolsonaro.

Confrontada com essas críticas, Duarte disse que não pensa em demitir-se e que vai permanecer na liderança da pasta enquanto sentir que tem a confiança das pessoas que a rodeiam no Governo.​

Já perto do final, Regina Duarte decidiu abandonar a entrevista por considerar “uma falta de respeito” ser questionada também pelos colegas do seu entrevistador, dizendo que isso “não estava combinado”.

“Eu achei que era uma entrevista com você, Daniel”, disse a secretária da Cultura do Brasil já depois de ter tirado o microfone e declarado que a conversa chegara ao fim mais cedo do que o previsto. “Começam a entrar pessoas a desenterrar mortos. Gente, pelo amor de Deus”, disse Regina Duarte, visivelmente incomodada.

"Virar obituário"

Pouco antes, os jornalistas que estavam no estúdio tinham lançado um vídeo gravado por Maitê Proença, e enviado no próprio dia para a CNN Brasil, onde a actriz acusa o Presidente Jair Bolsonaro e a secretária da Cultura de ignorarem a situação dos artistas brasileiros durante a pandemia da covid-19.

Em particular, Maitê Proença criticou a ausência de comentários públicos dos dois responsáveis sobre as mortes, no último mês, de personalidades da cultura brasileira como Rubem Fonseca, Aldir Blanc, Moraes Moreira e Garcia Roza.

Reagindo a essa crítica, a secretária da Cultura do Brasil disse que optou por enviar mensagens pessoais aos familiares e fez uma distinção entre as figuras que admira, mas com quem nunca teve uma relação de proximidade, e os seus amigos íntimos.

“Será que a secretaria vai virar um obituário? Quantas pessoas a gente está perdendo? Tem pessoas que eu não conheço”, disse Regina Duarte. “Aldir Blanc eu admiro muito, mas eu nunca estive [com ele].”

“Se isso é importante para as pessoas, eu posso ter no site da Secult [Secretaria da Cultura] o obituário. Pode ser que eu esteja errando, vou-me corrigir, não fiz por mal, peço desculpas, lamentei com as famílias”, disse a responsável pela pasta da Cultura no Brasil.

"Sempre houve tortura"

Num outro momento da entrevista, Regina Duarte referiu-se à memória das vítimas da ditadura militar no país, entre 1964 e 1985, como uma insistência em “olhar para trás” e uma “morbidez insuportável”, que atribui ao momento que se vive no Brasil e em todo o mundo por causa da pandemia do novo coronavírus.

“Sempre houve tortura, não quero arrastar um cemitério. Mas a humanidade não pára de morrer, se você falar de vida, de um lado tem morte. Porquê olhar para trás? Não vive quem fica arrastando cordéis de caixões, acho que tem uma morbidez neste momento. A covid está trazendo uma morbidez insuportável, não ‘tá legal!”, disse a responsável.

“Ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 60, 70, 80? Gente, vamos embora, vamos para a frente”, afirmou, antes de trautear a canção Pra frente Brasil, que se tornou no hino de apoio à selecção brasileira de futebol no Mundial de 1970: “Pra frente Brasil, salve a selecção. De repente é aquela corrente pra frente. Não era bom quando a gente cantava isso?”

Na terça-feira, o actor Lima Duarte, que contracenou com Regina Duarte em telenovelas como Roque Santeiro, disse que a actual situação política no Brasil tem “o hálito putrefacto de 64, o bafio terrível de 68”, referindo-se aos tempos da ditadura militar.​

"Show de horror"

Entre as reacções mais críticas à entrevista da secretária da Cultura do Brasil estão as de outros artistas brasileiros, como a cantora Anitta e o actor Tonico Pereira, e a de políticos como Marina Silva, líder do Rede Sustentabilidade.

“A entrevista da Regina Duarte para a CNN foi um show de horror. Relativizou a tortura, fez apologia musicada à ditadura, mostrou indiferença com as mortes de artistas no país”, disse Marina Silva no Twitter. “Se esse é o preço que ela decidiu pagar para se sentar no Governo Bolsonaro, ultrapassou qualquer limite aceitável. Escolheu se aposentar cumprindo um péssimo e ultrajante papel”, disse a candidata à Presidência do Brasil em 2010, 2014 e 2018.

A cantora Anitta usou outra rede social, o Instagram, para criticar a entrevista da secretária da Cultura do Brasil.

“Se recusar a ouvir uma opinião contrária [a de Maitê Proença] logo depois de enaltecer os tempos de ditadura me causa muito medo”, disse Anitta num comentário publicado no perfil de Regina Duarte no Instagram. “Até porque eu e muitos dos meus amigos seríamos os primeiros censurados caso esse regime voltasse ao Brasil e nós continuássemos no exercício do nosso trabalho.”

Também no Instagram, o actor Tonico Pereira disse que “já esperava” que a entrevista de Regina Duarte fosse “péssima”. “Meu Deus, ela conseguiu me surpreender. Foi muito pior do que eu pensava”, afirmou.

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