Covid-19: a ansiedade dos profissionais que andam na estrada

Há muitos profissionais que não podem aderir ao teletrabalho como é o caso dos que andam na estrada. O PÚBLICO foi conhecer os motoristas e as suas experiências em tempos de pandemia.

Foto
Paulo Alves é motorista da Uber e afirma ter todos os cuidados Daniel Rocha

As palavras “fiquem em casa” ouvem-se por toda a parte, mas, em plena pandemia, são muitos os profissionais que não podem aderir ao teletrabalho, como é o caso dos motoristas profissionais. Transportar mercadorias entre países, entregar encomendas ao domicílio ou manter a circulação de pessoas nas cidades: as funções variam, mas em comum estes profissionais têm o receio, o cansaço e o stress de andar na rua em tempos de pandemia.

“É perfeitamente normal que seja grande a ansiedade entre esses profissionais”, aponta a psicóloga Carla Porto, membro do Conselho de Especialidade - Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos Portugueses. No entanto, se esses trabalhadores sentirem que o seu trabalho “é reconhecido e essencial para o bem-estar da sociedade”, isso pode “ajudar a controlar a ansiedade e trazer alguma satisfação e bem-estar emocional”, acrescenta.

O PÚBLICO conversou com vários profissionais da estrada que confessam a sua preocupação por estarem a trabalhar em tempos tão diferentes. Carla Porto compreende os seus receios e defende que o apoio das famílias é “particularmente importante” nesta altura, sublinhando que estas devem “sentir-se orgulhosas e valorizar o esforço” dos seus familiares.

Os contactos por telefone durante as pausas na estrada são agora fundamentais porque “a partilha de experiências de ‘Como é que estás a viver isto?’ é, reparadora, uma vez que sentem que não estão sozinhos, porque estamos todos a viver a mesma situação”, recomenda a especialista.

Estar informado sobre as recomendações de segurança e cumpri-las também pode ajudar a tranquilizar estes trabalhadores e, também a preservar a sua saúde. “Se não há condições de se protegerem no âmbito das suas funções, devem aguardar até as terem. O valor da vida é igual para todos e essas pessoas não podem correr mais riscos que as outras”, alerta Carla Porto.

Embora as estradas estejam praticamente desertas — foram registados menos 7719 acidentes entre os dias 19 de Março e 17 de de Abril deste ano em comparação com o mesmo período dos últimos quatro anos —, conduzir durante muitas horas pode acarretar riscos, por exemplo, a nível da concentração e atenção, por isso, é importante redobrar as técnicas que já são utilizadas: fazer mais paragens e procurar o apoio da rádio, sendo que as escolhas musicais devem tender para géneros mais enérgicos e não melodias relaxantes.

“As pessoas têm de procurar manter-se activas, positivas e optimistas, apesar do realismo que é necessário ter também, e não se entregar ao negativismo, à solidão ou à ansiedade”, conclui Carla Porto.

Paulo Arnaud Marques, motorista de pesados: “Não fazem ideia do que estamos a passar”

A preocupação e o stress que transparecem na voz de Paulo Arnaud Marques são confirmadas pelos relatos que faz da sua experiência nas estradas nas últimas semanas. Deixou recentemente a pesca em Caxinas, Vila do Conde, e hoje atravessa países num camião de 18 metros para levar mercadorias. “Estações de serviço, balneários, farmácias, está tudo fechado. Uma pessoa passa quatro e cinco dias sem encontrar um sítio onde tomar banho, isto numa altura em que a higiene é tão importante”, relata.

O camionista de 30 anos admite sentir receio por ter de se manter a trabalhar e relembra a vez em que conseguiu encontrar um balneário público aberto: “A senhora da limpeza até ficou surpreendida – deixámos aquilo mais limpo do que o que estava, tal é o receio de apanhar alguma coisa.” As estradas europeias estão de tal maneira vazias que a sensação é de abandono. “Uma pessoa sente-se completamente abandonada.”

Desde que entrou na profissão, há curtos meses, já passou por França, Alemanha, Polónia, Bélgica. Por todo o lado, encontra portas fechadas. No início, diz, ainda era possível encontrar algumas refeições, mas, “nas últimas semanas, é uma sorte encontrar uma sandes”.

Paulo Arnaud Marques saiu de Portugal na semana passada para mais uma viagem, sem saber ao certo daqui a quantas regressa devido à redução do número de colegas a trabalhar. Em conversa com o PÚBLICO a partir de El Ejido, Andaluzia (Espanha), conta que uns dias antes fez “cerca de 60 quilómetros e passaram quatro carros”, o que pode acarretar claros riscos na atenção à estrada. 

“As pessoas não fazem ideia do que estamos a passar”, desabafa. Ao lado, no camião, o colega João Agra tem mais anos de experiência, mas “apesar de ter quilómetros suficientes para saber como as coisas funcionam”, nunca viu nada assim. As protecções individuais também são poucas e afirma que acabam por “reutilizar máscaras, mesmo sabendo que não é suposto, porque simplesmente não há mais”.

Foto
Manuel Mendes conduz um camião cisterna Nelson Garrido

Manuel Mendes, camionista de matérias pesadas: “É um clima de medo”

O transporte de combustíveis é outro sector que não pode parar. Manuel Mendes transporta materiais perigosos diariamente e admite que trabalhar durante a pandemia cria “um clima de medo”. “Nós trabalhamos a desconfiar uns dos outros”, adiciona.

A partir do Porto, onde reside, faz vários tipos de viagens no camião cisterna, algumas de 300 quilómetros para um lado e mais 300 para o outro em estradas quase desertas. Contudo, são os serviços de abastecimento a unidades hospitalares que “até arrepiam”. Os cuidados de protecção são apenas os essenciais: “Manter o distanciamento, evitar o contacto a todo o custo e desinfectar as mãos e os instrumentos do camião.”

Por vezes, até as medidas aplicadas pelas empresas podem piorar a situação. O camionista conta que a decisão de reduzir o horário da empresa fez com que se juntem “dezenas e dezenas de camiões à espera para abastecer e levantar guias de entrega”. Por isso, apesar das tentativas de distanciamento entre colegas, “uma pessoa nunca sabe onde está o perigo”.

Já na estrada, o pouco movimento é uma vantagem: “Uma pessoa agora só depende de si, quase não há o perigo dos outros.” Manuel Mendes explica que “basta uma guinada” para que um camião cisterna carregado dê facilmente uma “cambalhota”. Há menos trânsito, mas há mais tempo perdido nos postos de controlo da polícia. “Fecham as faixas, mandam os carros todos para um lado e só muito mais à frente é que deixam os camiões seguir viagem”, descreve. Nisto, perdem-se “cerca de 45 minutos para fazer um quilómetro”. “É a vida... isso é o menos”, conclui.

José, motorista de transporte público: “O medo de não saber se está infectado”

Quem anda pelas ruas da cidade também relata ansiedade. José (nome fictício) é motorista de autocarro e uma das suas paragens é no hospital. “Levamos e trazemos funcionários que lá trabalham. Sabemos que é uma zona de risco e claro que isso nos causa um pouco de pânico”, confessa.

Embora o número de passageiros seja reduzido, o medo de “não saber quem pode estar infectado” faz o motorista desejar que todos os que utilizem transportes públicos usem também máscaras. “Ficaria muito mais confortável se as pessoas tomassem as suas providências” para evitar o contágio, revela.

No caso da empresa para a qual trabalha, José queixa-se do número insuficiente de desinfectantes para o autocarro, assim como de máscaras para si. “Teria de usar cinco ou seis máscaras descartáveis por dia, por causa dos horários intermédios, e isso teria um custo insuportável”. “Vamos ter de usar máscaras reutilizáveis.”

Entre a população mais vulnerável à covid-19 estão os idosos, mas isso não os impede de se aventurem a sair de casa, mesmo em casos em que não haja extrema necessidade, nota José. “Infelizmente ainda há muitos idosos que usam o autocarro para a sua voltinha” e, apesar dos alertas dos motoristas, “no dia seguinte lá estão eles para dar outra voltinha”.

Foto
Paulo Alves elogia os clientes que entram no seu carro porque també têm cuidado Daniel Rocha

Paulo Alves, motorista da Uber: “Os clientes estão a fazer a sua parte”

Para os que transportam passageiros no seu veículo pessoal, as medidas de higienização tornaram-se fundamentais. “Eu comporto-me como um potencial foco de infecção”, diz Paulo Alves, condutor da Uber, em Lisboa, há mais de dois anos. Por isso, desinfecta o carro com frequência. O mesmo acontece com quem transporta: “Os clientes estão a fazer a sua parte com luvas, máscaras, desinfectantes. Isso traz logo um sentimento de segurança e tranquilidade para os condutores.”

Por estes dias, os clientes são pessoas cujo destino é o hospital — já não é no aeroporto que apanha turistas, lamenta —, mas Paulo não se sente especialmente receoso. Para combater a “redução drástica” de passageiros, faz entregas ao domicílio, mas também nesta área o fluxo de trabalho não cresceu muito porque, “apesar de a procura ter aumentado, também aumentou o número de pessoas a oferecer o serviço”, lamenta.

Foto
João Botelho conduz um táxi em Lisboa Daniel Rocha

João Botelho, motorista de táxi: “Os condutores mais irresponsáveis estejam em casa”

Há mais de 30 anos que João Botelho transporta clientes nas ruas de Lisboa, de táxi. “Não adianta fingir, existe sempre o receio de alguma contaminação”, admite o taxista de 61 anos. Lembra que para além das recomendações do uso de máscaras e desinfectantes, agora só pode levar três passageiros num carro que normalmente leva sete.

Nas ruas, nota uma redução de “80% a 90%” na circulação e está convencido que há menos radares. No entanto, não nota abusos. Os condutores andam mais devagar e vêem-se menos manobras perigosas, aponta. “Talvez os condutores mais irresponsáveis estejam em casa”, diz entre risos.

Quanto aos clientes, João abre a hipóteses de alguns utilizarem os táxis e não os seus carros pessoais para “evitar complicações” nos postos em que as autoridades param os veículos, uma vez que esses transportes são mandados parar “menos frequentemente”, avalia.

Foto
João Aguiar coordena o trabalho dos motoristas que entregam encomendas ao domicílio numa empresa em São Miguel, Açores Hugo Moreira

João Aguiar, coordenador de transportadora: “As entregas ao domicílio dispararam”

O ramo da entrega de encomendas também obriga a manter profissionais na rua. “Inicialmente, com o fecho das lojas e centros comerciais, sentimos uma grande quebra. Mas agora, as entregas ao domicílio dispararam para o nível do Natal”, revela João Aguiar.

O coordenador numa transportadora em São Miguel, nos Açores, admite algum receio por parte dos motoristas, mas enaltece a postura dos clientes que tentam minimizar os contactos e, por isso, também os riscos. “O facto de as pessoas cumprirem as distâncias de segurança e terem os seus cuidados ajuda bastante.”

De maneira a proteger não só os trabalhadores mas também os clientes, a empresa introduziu novas orientações para evitar o contágio: “Os clientes já não são obrigados a assinar as encomendas e os motoristas não entram em blocos de apartamentos para as entregar.”

Sugerir correcção