“A quantidade de crianças que precisa de internamento é pequena. Todas, até aqui, tiveram alta”

Maria João Brito, coordenadora do serviço de infecciologia do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, concorda com a opção de reabrir as creches: “É mais fácil começar pelas crianças que se infectam menos, que são as mais pequeninas”.

Foto

Unidade de referência para doenças emergentes, é para o serviço de infecciologia do Hospital Dona Estefânia que são encaminhadas as crianças com covid que na zona Sul do país precisam de internamento. As dez camas de pressão negativa na enfermaria e as duas em cuidados intensivos foram suficientes até ao momento, explica a coordenadora Maria João Brito, pediatra especialista em infecciologia. A primeira criança a precisar de cuidados intensivos na Estefânia foi internada este sábado. Em entrevista ao PÚBLICO explica o que pode justificar que as crianças se infectem menos que os adultos, mas também que ainda há muito por saber. Sobre a reabertura da sociedade, lembra que não será nunca para o normal que se conhecia antes da pandemia. As medidas têm de ser faseadas e as normas sempre seguidas.

Apenas uma percentagem muito pequena dos infectados são crianças. Esta seria uma realidade se não tivéssemos fechado as escolas?
Provavelmente os números seriam muito semelhantes, porque as crianças ficam menos sintomáticas do que os adultos. O vírus, para se ligar ao nosso aparelho respiratório, tem de se ligar a uns receptores que são em número muito menor nas crianças do que nos adultos. Por isso é que a quantidade de vírus que uma criança pode ter é menor, no geral, com o mesmo tipo de contacto de um adulto. É preciso haver um grande envolvimento com a criança, por exemplo, situações em que o pai e a mãe estão com cargas virais elevadas e estão sempre a pegar no bebé. Isso faz com que a criança que está sempre ao colo se possa infectar, mas no geral as crianças infectam-se menos. Por outro lado, as crianças têm uma imunidade diferente, por exemplo, da do idoso. Têm uma resposta às infecções muito forte, a que chamamos imunidade inata, que vai diminuindo ao longo da vida. Pode haver ainda um factor adicional, que tem a ver com o facto de as crianças terem co-infecções. Podem ser infectadas por este novo coronavírus e podem ser infectadas por outros vírus. Ou seja, esta competição dos vários vírus pode fazer com que um entre menos porque tem menos oportunidade de entrar. São teorias que circulam entre a comunidade científica e que estão em cima da mesa para esta situação da criança não se infectar tanto quanto um adulto.

As crianças são mais ou menos transmissoras que os adultos ou que os idosos?
Não se sabe. Habitualmente, rastreiam-se as pessoas que estão doentes. Seria preciso pegar em todas as crianças no mundo sem sintomas e rastreá-las para perceber se, mesmo sem sintomas, estariam a transmitir a doença.

A Organização Mundial de Saúde disse recentemente que apenas 2% a 3% da população mundial terá imunidade ao novo coronavírus. Isto resulta porque são poucos os infectados, porque os anticorpos produzidos são poucos ou pode ser uma questão de como os testes estão a ser feitos?
Países com grande impacto da doença, como Espanha ou Itália são países nesta altura que não têm imunidade. A Itália tem uma imunidade de 7%, a Espanha 10%. O que sabemos é que a maior parte da população ainda não contactou com o vírus. É por isso que não podemos baixar subitamente as medidas que foram tomadas até agora. A reintrodução da vida — não vou dizer ao normal, porque tão cedo não vamos voltar ao normal —, tem de ser faseada, porque a imunidade de cada país ainda é muito baixa. No nosso país é mesmo muito baixa, provavelmente deve ser à volta de 1%.

Foto
Maria João Brito, coordenadora da unidade de infecciologia do Hospital Dona Estefânia

A estratégia do Governo é reabrir as creches a 1 de Junho. É uma boa altura?
Não existem alturas ideais. O levantamento do estado de emergência será a 4 de Maio e se existirem repercussões não serão imediatas, serão algumas semanas depois. Provavelmente, teremos reabertura no secundário a 18 de Maio e das creches a 1 de Junho, o que dá para reavaliar a decisão de acordo com a situação. Não podemos ficar confinados para sempre e abrir com medidas faseadas umas das outras parece-me bem. Acho que é mais fácil começar pelas crianças que se infectam menos, que são as mais pequeninas. Se me vai dizer que conseguimos ensinar regras de etiqueta a crianças muito pequeninas, é óbvio que não. Mas nas escolas vai haver de certeza lavagem das mãos mais frequentes, maior passagem da desinfecção. Penso que todas essas medidas gerais vão ser replicadas mais vezes. As pessoas criaram bons hábitos durante esta fase de isolamento e quarentena. Aprenderam a lavar as mãos, a não se tocarem a toda a hora, a usar o gel desinfectante, a máscara. É muito importante garantir que estes bons hábitos não se perdem. Vai ajudar, aos poucos, ir abrindo a vida.

Na sua opinião deve haver um número menor de crianças por espaço?
Penso que depende das idades. Uma coisa são as turmas dos bebés de berço, outros são maiores. Mas o número de crianças que está indicado de acordo com o número de educadoras não é muito elevado. Provavelmente terá de se aumentar o espaço para elas circularem.

Quais são os sintomas predominantes nas crianças?
Felizmente uma grande maioria dessas crianças está com sintomatologia leve e permanece no domicílio. Temos dois quadros: sintomas semelhantes a uma gripe, com febre, dores de cabeça, de garganta, mialgias, tosse, ranho no nariz. Isto pode acontecer nas crianças no geral. Depois temos uma percentagem de doentes, que são doentes muito pequeninos, que têm febre muito alta. A tosse é um sintoma que acompanha a doença. Mas a tosse é semelhante a imensas infecções. Os critérios clínicos não ajudam o médico a fazer o diagnóstico. Vamos sempre precisar de uma análise para confirmar ou excluir se o doente tem covid.

Há artigos que falam de outros sintomas como a diarreia, erupção na pele, perda de olfacto. Qual é a vossa experiência?
A perda de olfacto é um sintoma muito frequente, mas não é na idade pediátrica. Pode haver casos com sintomas gastrointestinais, mas sem outros sintomas acompanhantes é raro. Na pele, o que aparece são alterações cutâneas e algumas são semelhantes a outros vírus. Podem aparecer exantemas, pode haver outro tipo de lesões que chamamos vasculite.

Quais têm sido os maiores desafios?
Todos os doentes são um desafio. Temos de pensar se vamos oferecer um tratamento experimental ou não e se naquele doente vale a pena, qual o tratamento que vamos propor. Isto tem de ser tudo muito bem discutido na equipa e conversado com os pais. Mas claro que tivemos algumas crianças que nos preocuparam mais porque a gravidade da doença foi maior.

A que opções recorreram?
O tipo de tratamentos que oferecemos são os que foram utilizados noutros países. Na China, na Itália, em Espanha. Nós, médicos que estamos na linha frente, temos de beber tudo o que está a ser feito nos outros países e quais são os resultados. Utilizámos medicamentos que se utilizam na infecção VIH, para a malária, para tratar bactérias. Explicamos sempre aos pais que não estamos a inventar nada e dizemos uma coisa muito importante: atenção que não há nenhuma confirmação que o tratamento seja eficaz. Para isso, é preciso tempo e outro tipo de estudos que ainda não temos tempo para estarem feitos.

É muito difícil avaliar os se tratamentos ajudaram?
Todas as nossas crianças até aqui tiveram alta para casa. A amostra do número de crianças internada é muito pequena. As amostras têm de ser muito maiores. Ainda não passou tempo suficiente para se poder saber se este ou outro tratamento é eficaz, se nenhum é eficaz ou se a evolução teria sido diferente ou igual.

A severidade da doença é diferente consoante a idade? Ou acontece como nos adultos, em que os sintomas se agravam quando têm outras doenças associadas?
Tivemos crianças internadas com as duas situações, com cormobilidades e saudáveis.

Qual a vossa capacidade no serviço de infecciologia?
Nesta altura temos em funcionamento dez camas na unidade de infecciologia com pressão negativa e duas em cuidados intensivos de pressão negativa. A quantidade de crianças com doença que precisa de internamento é pequena, contrariamente ao que vemos nos adultos. Neste momento [segunda-feira] temos internadas seis crianças, uma delas em cuidados intensivos. Temos 29 doentes seguidos no domicílio e 37 curados.

Qual foi a média de tempo de internamento na vossa unidade?
A média habitualmente de internamento de cada criança variou de cinco a sete dias. Vou dar exemplos. Tive uma criança internada, não porque tinha uma gravidade do covid, mas porque precisava de fazer tratamento para hidratar e para a dor provocada pela enxaqueca. Ao fim de 24 horas estava bem, não tinha nenhuma gravidade de covid que justificasse estar a fazer estes tratamentos experimentais que falei. Mas tive uma criança com uma doença crónica, que também tinha covid, e a complicação da sua doença crónica pô-la em maior risco. Há um pouco de tudo.

Teme-se muito as sequelas que a covid possa provocar. Existe alguma indicação em relação às crianças?
As sequelas são sempre situações que acontecem a longo prazo. Nunca em menos seis a 12 meses vou poder dizer se aquele doente tem sequelas ou não.

Têm um plano de seguimento destas crianças de covid, para ir analisando a sua evolução?
Criámos uma consulta no hospital Dona Estefânia, que se chama a consulta covid, onde já seguimos doentes. Algumas crianças precisam de ser reavaliadas, outras não chegam a ser internadas, mas precisamos de as ver ou de uma radiografia ou fazer exames. Todos os doentes com pneumonia que tiveram alta estão a ser seguidos e vão ser seguidos por nós.

O que foi preciso adaptar no serviço?
A unidade de infecciologia da Estefânia tem sido unidade de referência para doenças emergentes. Ou seja, a Febre de Marburgo, a gripe pandémica do H1N1, o ébola. Estamos sempre preparados, temos treino, tínhamos os equipamentos de protecção individual. Aqui a situação que ocorre, e que é um pouco mais violenta digamos assim, é que habitualmente circulamos dentro do hospital. E pelo risco de infecção ficámos confinados à nossa unidade. É onde tomamos as nossas refeições, o banho, temos as nossas pausas, dormimos três, quatro horas. Essa parte do isolamento é uma parte um pouco mais dura, mas somos profissionais de saúde e a equipa está treinada para essa função. Há uma coisa que digo aos médicos que aqui vêm estagiar. Aqui não há médicos, não há enfermeiros, não há assistentes operacionais ou administrativas. Aqui é uma equipa e todos são importantes.

Foto

Neste momento o serviço está totalmente dedicado à covid.
Nesta altura estamos totalmente dedicados à covid. Mas temos a equipa médica dividida. Uns estão na consulta covid, outros estão a ver doentes covid e outros estão a ver os seus doentes que têm na consulta. Não pode faltar medicação aos doentes com VIH ou com uma tuberculose. Na grande maioria dos doentes estamos a fazer a consulta não presencial e a nenhum doente faltou medicação. Para facilitar, a farmácia do hospital faz o encaminhamento da medicação para as farmácias junto dos sítios onde as pessoas moram, com toda a privacidade. Não nos podemos esquecer que há outras doenças além da covid e esses doentes tem de continuar a ser seguidos.

Todas as crianças têm direito a um acompanhante. Se calhar as mais pequenas sentem mais essa necessidade...
Todos. Os adolescentes ficam mais impressionados com o facto de só nos verem os olhos. As crianças pequenas às vezes até se riem, pensam que é uma brincadeira. Na unidade temos um tipo de vidro que, de acordo com a luz ou a hora do dia, fica espelhado ou transparente. Aproveitamos muito a altura em que o vidro permite para que, quando estamos na zona limpa, nos vejam a cara. Dá alguma tranquilidade.

O que perguntam?
A primeira que coisa que explicamos é porque estamos vestidos daquela maneira, para não se sentirem assustados. Explicamos que na idade delas a situação não é tão complicada, que vamos resolver o problema da falta de ar. Vamos desmistificando assim e muito com o toque — estamos protegidos com luvas —, que dá alguma tranquilidade. O tocar, o ajudar a fazer a cama, são tarefas que temos para humanizar um pouco mais a nossa relação médico-doente.

Os pais estão no mesmo quarto dos filhos?
Oferecemos a todos os pais a oportunidade de um ficar, com a ressalva que se pode infectar. Não houve nenhum pai até hoje que não quisesse ficar com o seu filho. Há pais que estão infectados, não têm doença importante, e ficam tranquilamente. Mas pode acontecer um pai ou uma mãe infectar-se. Nessa altura, fazemos raio x e se tiver radiografia alterada, falamos com os colegas do [hospital] Curry Cabral, que seguem os adultos. Pode haver pais que tenham de ir ao Curry fazer medicação ou inclusivamente ficar internados. Temos pais que não se infectaram.

Os pais usam algum tipo de protecção?
Podem usar se quiserem, mas a maior parte não usa. Estão dentro de um quarto de pressão negativa. Estão 24 sob 24 horas num quarto junto com o seu filho. É como se os pais estivessem internados com os filhos.

Tem-se apontado 14 dias como período médio de duração da doença, mas há quem se mantenha positivo por mais tempo. Existe algum tipo de evidência nas crianças?
Ainda sabemos muito pouco. Às vezes um teste positivo ao fim de quatro semanas não quer dizer que ainda tenha replicação do vírus. São testes feitos com biologia molecular, em que faço a identificação molecular do DNA do vírus. Só sei que a partícula do vírus ainda está lá naquela amostra, mas não sei se ainda está activa, se ainda provoca doença. Isso acontece nas crianças com muitos outros vírus. Às vezes ainda temos a presença de um vírus passado ainda muito tempo, mas vírus já não está em replicação.

Sugerir correcção