Guiné-Bissau e a ilogicidade das relações internacionais em tempos de covid-19

Há um cansaço da comunidade internacional em relação à Guiné-Bissau. Os protagonistas políticos terão que sentar-se em torno de uma mesa de reconciliação nacional, em busca de acordos e consensos fundamentais para refundar o Estado.

Tenho uma grande amizade e simpatia pelo povo da Guiné-Bissau.

Gosto do seu crioulo, da sua comida, da sua música, das suas gentes, da sua fina generosidade e sincera irmandade para com os caboverdianos. A tremenda beleza paisagística da Guiné-Bissau - o Arquipélago dos Bijagós (88 ilhas) é escandalosamente lindo - e a riqueza da biodiversidade são filões de ouro para o turismo.

Sempre que visitei aquele país irmão senti-me emocionado. Em vários momentos vieram-me lágrimas aos olhos e não pude conter a emoção por pisar o solo de uma das pátrias de Amílcar Cabral. Os guineenses consentiram enormes sacrifícios para a nossa libertação do jugo colonial.

É eterna, pois, a nossa gratidão.

O primeiro das ex-colónias portuguesas em África a ascender a independência (24 de Setembro de 1973), ainda antes da Revolução dos Cravos em Portugal.

Aliás, a luta armada de libertação da Guiné e Cabo Verde conduzida pelo PAIGC foi decisiva para a mobilização dos Capitães de Abril e para o derrube do regime salazarista.

Mas, desde a independência, a Guiné-Bissau nunca teve estabilidade. Golpes de Estado, assassinatos de adversários políticos, crises económicas e instabilidades governativas caracterizam o quotidiano da vida política naquele país vizinho.

As instituições são frágeis, não há nem tolerância nem paciência para o exercício sereno e estável do poder político em democracia. As Forças Armadas não são apolíticas e republicanas e interferem amiúde nos processos político-partidários e eleitorais.

As disputas políticas são uma questão de vida ou morte. Quem ganha ganha tudo, quem perde perde tudo.

Ninguém está disposto a fazer a penosa travessia do deserto na oposição. Quem perde começa a conspirar no dia seguinte para não ficar arredado da mesa do poder. Tudo é líquido. Desfazem-se alianças, conspira-se e derrubam-se governos. A Constituição não conta, serve tudo e o seu contrário, conforme os interesses interpretativos de cada um. O processo político é ilógico e irracional. Os atores políticos não se entendem, a violência grassa e os desacordos são irreconciliáveis.

Nos meus três mandatos como Primeiro-Ministro, trabalhei com os Presidentes Kumba Yalá, Henrique Rosa, Malan Bacai Sagná, Nino Vieira, Raimundo Pereira, Serifu Namadju e José Mário Vaz.

Perdi a conta dos Primeiros-Ministros. Em Cabo Verde, recebi as visitas de Alamara Nhasé, Carlos Gomes, Júnior e Domingos Simões Pereira. Fiz três visitas oficiais, duas nos mandatos de Carlos Gomes Júnior e uma no de Domingos Simões Pereira.

As perspetivas de cooperação sempre foram muito boas, mas a instabilidade política não permitiu que se fizesse nada.

Do meu ponto de vista, verifica-se um cansaço da comunidade internacional em relação à Guiné-Bissau.

Há algumas semanas disse a um amigo que as instituições internacionais acabariam por reconhecer Umaru Sissoko Embaló e o status quo por ele criado.

Só assumiu o poder naquelas circunstâncias porque tem fortes cumplicidades e apoios no seio da CEDEAO. Logo após a divulgação dos resultados eleitorais provisórios, visitou vários países africanos, entre os quais Cabo Verde, para agradecer aos amigos o apoio concedido durante a campanha eleitoral.

Na sequência da posse “simbólica”, perante os seus apoiantes, fez visitas de Estado ao Senegal, Níger e Nigéria.

Para mim, conhecendo a forma como a CEDEAO funciona, o reconhecimento oficial de Umaru Sissoko Embaló era uma questão de tempo.

A comunidade internacional, a braços com a mais devastadora crise sanitária dos últimos cem anos, com graves consequências políticas, económicas e sociais, para além de cansada, já não tem tempo nem recursos para analisar e apoiar na resolução da questão da Guiné-Bissau, um dos países mais pobres do mundo.

A solução encontrada, como previra, foi deixar tudo como está para ver como é que fica.

Assim, foi sem surpresa que recebi as decisões da CEDEAO e de vários outros organismos internacionais e países. Nem vale a pena tentar identificar incoerências nos comunicados divulgados nos últimos dias. Infelizmente, nesse plano, não há lógica nem racionalidade. As medidas da CEDEAO, que viabilizaram a permanência de José Mário Vaz na presidência, após ter terminado o mandato, a nomeação do Governo de Aristides Gomes e as eleições presidenciais, também foram tomadas à revelia da Constituição e continham muitas contradições.

Do meu ponto de vista, a solução dos problemas da Guiné-Bissau passa pelos próprios guineenses. “Por mais quente que seja a água da fonte, ela não cozerá o teu arroz”, já tinha dito Amílcar Cabral. Os desafios desse país não são de natureza jurídico-constitucional, mas sim eminentemente político-institucional.

Os protagonistas políticos terão, pois, que sentar-se em torno de uma mesa de reconciliação nacional, em busca de acordos e consensos fundamentais, que lhes permitam refundar o Estado, garantir a paz e a estabilidade, reconstruir o país, abrir os caboucos e lançar os alicerces do desenvolvimento político-institucional e económico.

O povo da Guiné-Bissau merece esse “sacrifício” da sua elite política.

Ex-primeiro-ministro de Cabo Verde

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