Covid-19: uma reflexão sobre mudança e cuidados de saúde mental

Não podemos fingir que a partir de Maio tudo voltará a ser como antes! Esta situação continuará a ter um impacto negativo na saúde mental num futuro mesmo a longo-prazo, incluindo em crianças e jovens.

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@petercalheiros

A evidência científica actual aponta para os diversos impactos na saúde mental e que estes podem atingir 25% do total de população afectada no decorrer de uma catástrofe.

Nas últimas semanas, o estado de emergência associado à covid-19 e à obrigação de nos mantermos em isolamento social causou mudanças repentinas e gerou stress e incerteza. Apesar disso, e contrariamente ao que algumas pessoas pensavam poder acontecer, a pandemia não causou pânico generalizado, mas sim cooperação e uma unanimidade nacional em torno dos nossos recursos individuais e colectivos que foram cruciais para nos protegermos de um desastre maior.

Em muitos de nós, a mudança gerou resiliência (capacidade de recuperação perante factores ou condições adversas) e acabamos por nos adaptar ao tão falado “novo normal”. Ainda bem que assim foi para a maioria, mas, ao olharmos para o todo, encontramos pessoas a quem a pandemia coloca desafios maiores e com os quais é difícil de lidar. Há consequências e riscos significativos para a saúde mental de muitas pessoas que sofrem e que se encontram em situações de risco que é preciso identificar, orientar e monitorizar.

Não podemos fingir que a partir de Maio tudo voltará a ser como antes! Esta situação continuará a ter um impacto negativo na saúde mental num futuro mesmo a longo-prazo, incluindo em crianças e jovens. Problemas de ansiedade, depressão, stress agudo podem surgir ou podemos ver agravados estados preexistentes de doença psiquiátrica. De acordo com dados de investigação, poderá esperar-se um aumento significativo do absentismo e do burnout nos meses que agora virão. Um grupo específico de pessoas que pode estar a ser mais directamente afectado pelo agravamento do surto de covid-19 são, por exemplo, aquelas que sofrem de perturbação obsessivo-compulsiva (POC). O pico de ansiedade causado pelo vírus alimenta ainda mais os medos de contaminação e desencadeia o aumento de acções compulsivas nocivas. Para estas pessoas, o coronavírus pode ser o tema diário dos seus pensamentos, resultando em compulsões não fundamentadas para tentar controlar e evitar o vírus. O sofrimento aumenta para estas pessoas e para outras que, de igual forma, vêem reduzidas as suas consultas regulares.

A retracção económica, como consequência da crise actual, trará mais dificuldades sociais acrescidas às pessoas mais vulneráveis e também a redução dos cuidados de saúde mental, pelo que é necessário antecipar e tentar amortecer os riscos para a população.

Nunca foi tão importante dar valor e recompensar o trabalho de profissionais que diariamente têm ajudado a população a manter-se minimamente estável e obediente aos pedidos de mais quarentena. São disso exemplos jornalistas, forças de segurança, professores, profissionais de saúde, entre muitos outros.

A investigação sublinha a importância de nos concentrarmos na resiliência e no desenvolvimento de medidas de promoção do bem-estar após o período de isolamento social e de prevenção do desajustamento socioemocional.

No imediato, a resposta necessária ressalta a importância de intervenções que reforcem o sentido de comunidade, apelem à calma, e sustentem a esperança. Só assim conseguiremos adaptar-nos à mudança que fomos obrigados a fazer e manter doravante os comportamentos de protecção que ainda serão necessários.

Enquanto profissional de saúde mental, sei que a pandemia não acabou, apenas tem vindo a transformar-se e é importante que quem atende aos que sofrem de uma doença mental ou aqueles que se sentem particularmente vulneráveis e sensíveis nestes tempos, procure ajudar a pessoa no sentido de uma recuperação mais rápida e com menos custos.

Ficam algumas ideias:

  • Identifique os grupos de risco e adapte as intervenções às suas necessidades específicas.
  • Seja empático, valide os sentimentos da pessoa e adopte comportamentos de tranquilização e segurança.
  • Avalie o surgimento/agravamento da história clínica da pessoa ou o desenvolvimento de sintomatologia nova, dando particular atenção às comorbilidades (outras perturbações concomitantes).
  • Avalie o consumo excessivo de álcool e drogas e dê directrizes de contenção.
  • Avalie o risco de suicídio.
  • Disponibilize conhecimento acerca dos riscos e dos impactos da covid-19 na saúde física e mental da pessoa.
  • Normalize reacções transitórias de angústia, medo, raiva, ansiedade, culpa e desregulação comportamental, durante uma crise. O clínico deve ajudar os pacientes a entenderem que o seu sofrimento é humano e, na maioria das vezes, inevitável, e não deve ser minimizado.
  • Avalie o recurso à Internet e o consumo exagerado de notícias e proponha a sua contenção. Sugira o recurso a fontes válidas para evitar mitos, rumores e desinformação.
  • Proponha hábitos equilibrados de alimentação e exercício físico, bem como a ocupação do tempo com actividades que gerem bem-estar.
  • Sempre que necessário, dê suporte aos familiares das pessoas com doença.
  • Promova o desenvolvimento de competências socioemocionais e a resiliência das pessoas em situação de transição profissional ou desemprego.
  • Reveja a necessidade de suspender, na fase pandémica, a exposição e a prevenção de resposta da terapia cognitivo-comportamental aplicada aos que sofrem de POC, retomando mais tarde.
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