O diabo está nos detalhes

O que está em causa é saber qual é a melhor estratégia europeia para sair da crise. A que convém às economias mais ricas do Norte ou aquela que pode ajudar os países mais vulneráveis do Sul? Mais uma vez, falta a resposta.

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1. De um modo geral, as decisões do Conselho Europeu de quinta-feira foram um passo na boa direcção. Ninguém quis repetir o confronto da última cimeira, que esteve à beira da ruptura, correndo o risco de terminar sem qualquer decisão. Antes da reunião, Charles Michel e Ursula von der Leyen trataram de baixar as expectativas, abdicando de um comunicado final. A própria chanceler Merkel – que teve um papel decisivo para evitar o desastre na última cimeira – traçou previamente algumas linhas vermelhas, balizando até onde poderia ir a Alemanha no financiamento dos recursos necessários para a reconstrução da economia europeia – quer no tempo, quer no modo.

A questão mais difícil – a emissão de dívida conjunta para que cada Estado possa financiar-se sem percalços – foi afastada e substituída por outra forma, muito menos ambiciosa, de dívida conjunta emitida pela Comissão Europeia e destinada apenas ajudar a financiar o “plano de recuperação”. Pode dizer-se, portanto, que os nove países que a defenderam formalmente numa carta endereçada a Charles Michel na véspera da penúltima cimeira, perderam esta batalha. Entre os seus subscritores estavam a França, Itália, Espanha, Portugal, Bélgica, Luxemburgo, Grécia ou Eslovénia. Não tiveram força suficiente para convencer a Alemanha. A cimeira limitou-se a definir algumas orientações gerais, ainda bastante vagas, pedindo à Comissão que as traduza numa proposta concreta. Na cimeira anterior, tinham pedido ao Eurogrupo que fizesse o mesmo no seu âmbito de actuação.

2. No essencial, pode dizer-se que os líderes europeus ainda não definiram com precisão o exacto montante do “plano de recuperação”, como será financiado, que modalidades deve revestir e qual deverá ser a sua duração. É verdade que já há algumas balizas. O montante global deverá rondar os 1,5 biliões de euros, embora Angela Merkel tenha referido apenas um bilião no final da cimeira. Von der Leyen terá agora de especificar as verbas que devem sair do Quadro Financeiro Plurianual (2012-27), que será revisto de alto a baixo, e o que corresponderá ao chamado “fundo de recuperação”, que lhe deve ser acrescentado. O financiamento adicional necessário através da emissão de dívida pela Comissão foi, aparentemente, uma decisão consensual. Mesmo assim, alguns países continuam a levantar objecções de natureza jurídica, que podem ser só isso, mas também uma forma de disfarçar a sua falta de vontade política para recorrer a este instrumento. Merkel pareceu aceitá-lo numa conferência de imprensa prévia à cimeira.

3. Duas grandes divergências ficaram por resolver e qualquer delas pode fazer toda a diferença. A primeira diz respeito às modalidades das ajudas – empréstimos ou subvenções, o que quer dizer transferências a fundo perdido. Quatro países defenderam intransigentemente os empréstimos – Holanda, Áustria, Suécia e Dinamarca. O chefe do Governo sueco, Stefan Lofvnen, foi particularmente enfático na rejeição de subvenções, com o argumento de que a recuperação das economias é uma tarefa essencialmente nacional. No final da cimeira, Von der Leyen tentou conciliar as duas posições, garantindo que a resposta pode integrar as duas modalidades. Falta saber em que proporção.

De acordo com o Financial Times, a chanceler insistiu em que “qualquer financiamento suplementar obtido nos mercados terá de ser pago.” É decisivo o que está em causa – se forem empréstimos, mesmo que em boas condições e com maturidades longas, somam-se à dívida pública de cada país. Os países mais endividados do Sul terão maior dificuldade em gerir os desequilíbrios gerado pela crise. Convém lembrar que as verbas (540 mil milhões de euros) postas à disposição pelo Eurogrupo também são constituídas por empréstimos.

4. A outra questão que ficou em aberta diz respeito à “reinvenção” do Orçamento Plurianual da União. Foram igualmente visíveis as divisões entre os Estados-membros. Merkel insistiu em que tem de ser dada prioridade a uma “nova política industrial europeia”, que reforce os chamados “campeões europeus” e permita reduzir a dependência externa em alguns sectores que a presente crise demonstrou serem vitais. Onde estão esses “campeões”? Em geral, nas grandes economias. Ou nos países mais ricos. O debate não é de agora. Portugal opunha-se a esta nova “estratégia”, considerando que os incentivos deviam dirigir-se às empresas (sobretudo PME) que fossem altamente inovadoras. As negociações do novo Quadro Financeiro Plurianual tinham caído num impasse em Fevereiro, com a redução as verbas destinadas à coesão.

O que está em causa é saber qual é a melhor estratégia europeia para sair da crise. A que convém às economias mais ricas do Norte ou aquela que pode ajudar os países mais vulneráveis do Sul? Mais uma vez, falta a resposta.

5. A The Economist aconselhava a não acreditar demasiado na palavra “solidariedade” para encontrar uma reposta comum. Essa resposta depende dos pontos de vista de cada Governo que, por sua vez, dependem demasiadas vezes das tensões internas a que estão sujeitos. Nos Países Baixos, na Suécia, na Áustria ou na Dinamarca, as forças políticas que governam estão sob pressão constante de partidos nacionalistas com scores eleitorais muito elevados. O liberal Mark Rutte ou os sociais-democratas Stefan Lofven e a sua homóloga dinamarquesa, Mette Frederiksen, confrontam-se com essa nova realidade política e a tendência para cederem ao discurso eurocéptico é muito forte. Na Itália, é o contrário. Giuseppe Conte vê na solidariedade europeia a única barreira para conter a força da extrema-direita de Matteo Salvini. Ontem, lembrou seus pares europeus que a crise sanitária provocou uma emergência económica, que pode transformar-se rapidamente “numa emergência política”.

“Mais tarde ou mais cedo, todos [os governos] terão de enfrentar eleições que, ao longo da última década, foram fragmentando a paisagem político-partidária e tornaram cada vez mais difícil forjar consensos ao nível das politicas europeias”, escreveu ontem Tony Barber no Financial Times. A questão está em que será difícil imaginar uma rápida recuperação das economias do Norte, altamente exportadoras, se as suas congéneres do Sul fracassarem. Até porque, ao contrário do que aconteceu na crise financeira de 2008, não encontrarão alternativas nos mercados emergentes. Os efeitos dramáticos desta pandemia estendem-se ao mundo inteiro.

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