25 de Abril, um símbolo de duas partes

Deixem-se de petições. Entreguem-se ao símbolo, de Assembleia fechada ou aberta, com ou sem deputados. Os tempos assim o exigem.

A minha geração cresceu depois da revolução, e nela não participou. Muita gente da minha idade, porém, recorda com carinho os rostos exuberantes dos nossos pais ainda jovens, emocionados por falarem, em primeira mão, de uma data que os marcaria para sempre. Talvez também possam reconhecer – como é o meu caso – o seu pai ou mãe empoleirados numa árvore no Largo do Carmo, espectadores passivos como a maior parte de nós é agora, vendo a história a desenrolar-se perante os seus olhos, apenas com a tímida sensação de a terem vivido.

Quando fui crescendo percebi, para grande surpresa minha, que nem todos os que me rodeavam pensariam da mesma forma. Algumas frases veladas, algumas palavras tortas, foram-me revelando um mundo que ignorava, de amargura escondida, em que se calava o ressentimento por tudo aquilo que a revolução dos cravos lhes tinha sonegado ou destruído. Ainda hoje me recordo da estranheza com que ouvi um homem de meia idade, um homem de cultura, bem instalado na vida e a quem nada aparentemente faltava, se referir ao 25 de Abril como o dia “em que rebentou o cano de esgoto”. Fiquei estarrecido. Tinha crescido num meio unânime, que via a revolução dos cravos como talvez a única coisa que valeu a pena ter vivido; para muitos foi, aliás, a única coisa que viveram integralmente, em que estiveram de modo autêntico.

Hoje discute-se sobre se a Assembleia deve ou não reunir-se para celebrar a data. Se é um bom ou um mau exemplo, o que dão à população, cuja livre circulação e socialização está fortemente condicionada ou desaconselhada. Há petições a circular, contra e a favor. Eu olho para a polémica e fico-me na primeira palavra que escrevi neste parágrafo: hoje. Ou antes: 25 de Abril de 2020. É que o dia em si, nada vale. A terra rodou apenas mais 46 vezes em torno do sol. O que devíamos estar a discutir é o símbolo em si: esta mesma palavra que na Grécia antiga se referia a uma espécie de amuleto dividido em duas partes, que representava um elo forte entre duas casas unidas por laços de diplomacia, um objecto que em si nada valia, separado a maior parte das vezes, e apenas raramente reunido. O Brasil e a Espanha, que viveram ditaduras tão ou mais opressivas do que as nossas, não têm um símbolo como este. Pergunto-me porque não, e nenhuma resposta me deixa satisfeito. Parecem-me mais pobres neste capítulo.

Eis o meu símbolo, a minha memória, a metade do meu amuleto: a cabeleira ainda farta do meu pai, o seu farfalhudo bigode dos anos 80, a ingenuidade da minha mãe que adormecera adolescente, durante a revolução, de punho cerrado. Mas recordo-me também de todos aqueles que resmungaram qualquer coisa irritada. Quero que o meu filho se continue a recordar dos seus avós neste dia, e que ouça os seus colegas, também eles, repetir os resmoneios que ouviram em casa; que se ponham a discutir as virtudes e faltas do nosso sistema político, e que falem, mesmo que atabalhoadamente, sobre o que é viver, de facto, num regime que impõe a censura e limita a cidadania. E que possam formar o seu próprio entendimento. 25 de Abril de 1974. Deixem-se de petições. Entreguem-se ao símbolo, de Assembleia fechada ou aberta, com ou sem deputados. Os tempos assim o exigem.

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