Temos de escolher entre dois males?

A escolha da resolução desta ou de qualquer outra crise não está entre a liberdade e a ditadura como forma mais eficaz para um regime político em tempos de crise.

“Mais vale vermelhos do que mortos!” Este era o slogan usado durante a Guerra Fria por muitos dos que se opunham às armas nucleares, subentendendo assim que entre a ditadura comunista ou a morte numa guerra nuclear, a melhor opção seria a primeira.

Felizmente, essa opção não se colocou. Mas este slogan é motivo de reflexão sobre o que se passa hoje no mundo a propósito da pandemia do coronavírus. Apesar de um contexto histórico e político totalmente diferente, há elementos que me fazem pensar que, para muito boa gente, a escolha entre dois males é uma opção.

Refiro-me concretamente à “fama” – e mais algumas novas “rotas da seda”– que a China tem ganho ao longo deste período difícil que atravessamos: “a China foi capaz de controlar e superar o vírus em tempo recorde”; a China “ajuda” os países como a Espanha e a Itália”; a China é “solidária”, contrariamente à des-União Europeia… enfim, a China não poderá ser um exemplo?

Ignora-se assim a verdadeira natureza de um regime que acima de tudo é uma ditadura comunista adaptada aos tempos modernos. Um regime que soube inteligentemente tirar as lições do malogro da ex-URSS, permitindo a propriedade privada e o enriquecimento particular, não apenas para dinamizar a economia, mas como forma de granjear apoio a um regime com punho de ferro.

Na verdade, para além de sabermos que a covid-19 nos chegou da China, não sabemos quantas pessoas morreram ou continuam a morrer do vírus ou por tentarem divulgar ao mundo o que se passa na realidade… E não sabemos porque não há imprensa livre, os media e as redes sociais são totalmente controlados, tal como o é a população, no seu conjunto e individualmente, pelos meios tecnológicos mais sofisticados com os quais os cidadãos são monitorizados através dos seus smartphones e de câmaras de vigilância. E não sabemos, porque se trata de uma ditadura onde cada passo é vigiado e cada desvio punido sem piedade.

Aos que consideram que a opção se situa entre a liberdade ou a vida, eu aconselho vivamente que leiam o artigo de Yuval Noah Harari no Financial Times. Porque, na verdade, a opção não é essa. A escolha da resolução desta ou de qualquer outra crise não está entre a monitorização dos passos de cada cidadão e a segurança, não está na repressão dos direitos humanos, não está na concentração absoluta do poder nas mãos de um líder absoluto, nem de qualquer “salvador” de última hora. Não está entre a liberdade e a ditadura como forma mais eficaz de um regime político em tempos de crise, mas sim na educação e informação clara e aberta das populações. Quanto maior for a consciência cívica e democrática dos povos maior será a sua resistência às catástrofes e também ao autoritarismo político.

Não é por acaso que a população portuguesa, que viveu 50 anos de ditadura, tem conseguido distinguir, na sua esmagadora maioria, a diferença entre as necessárias medidas coercitivas tomadas, e bem, pelo Governo português, decorrentes do estado de emergência em que vivemos, e a memória de um passado que, apesar dos saudosistas, se quer enterrado.

O papel do Estado é fulcral na protecção da saúde e do bem-estar dos seus cidadãos e torna-se ainda mais importante em tempos de crise como a que vivemos actualmente. Mas uma coisa é a necessária protecção do Estado através dos meios necessários à saúde, educação e combate às desigualdades sociais dos cidadãos, outra é submeter os cidadãos ao seu serviço. Parafraseando Arthur Koestler, é bom nunca esquecer que num regime comunista como o chinês, o indivíduo é zero e o Partido o infinito. Mas o mesmo se pode dizer de qualquer outro tipo de ditadura…

Nos tempos que correm, de estado de emergência e da supressão temporária de vários direitos em numerosos países, a tentação de transformar o temporário em definitivo é grande. Visto pelo prisma deste lado ocidental do mundo, a tentação virá sobretudo do populismo redentor, dos líderes políticos para quem esta crise serve também de trampolim para manter e endurecer o seu poder. Neste campo, não tenho muitas ilusões sobre o que se passará a seguir…

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