Por ora

Testemunho de Cristina Taquelim, mediadora de leitura. “O silêncio tomou conta dos largos e da vida de novos e velhos. Só os pássaros resistem no canto e no voo. Por ora, as crianças não correm pelas ruas.”

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Miguel Manso

A aldeia está mais deserta do que nunca. Tirando o ladrar dos cães, nada mais se escuta.

Sem dar ouvidos ao povo, mas pressentindo qualquer coisa no ar, os cães vadios correm como se fossem os donos das ruas. No largo alguns imigrantes eslavos, agora sem trabalho, ocupam os bancos do jardim e as portadas das casas, procurando resistir ao confinamento forçado em casas com três quartos que acolhem mais de 15 almas.

O silêncio tomou conta dos largos e da vida de novos e velhos. Só os pássaros resistem no canto e no voo. Por ora, as crianças não correm pelas ruas. Por ora, estão suspensas as histórias que habitam a minha mala de mediadora de leitura. Por ora, adormecem na minha boca, saudosas de ser contadas de olhos nos olhos. Imagino os livros a pedirem-me que os conte, o cheiro dos moços suando correrias, as risadas, a luz dos teatros e bibliotecas, o quente dos abraços, as tardes de orelhas emprestadas às memórias da D. Raimunda, o rirmos juntas, o chorarmos juntas. Por ora, só consigo imaginá-los. Até a morte estranha não ser chorada em companhia. Resistindo ao inominável, os anjos de batas brancas, incansáveis, dão o corpo às balas, contam as baixas e arregaçam as mangas para novos embates. De muitos lados erguem-se barreiras ao incerto que virá. O Estado tenta desesperadamente dar alma a um Serviço Nacional de Saúde profundamente fragilizado pelo capitalismo selvagem. O Papa ajoelha-se como um menino perdido, na gigantesca praça e suplica a Deus pelo milagre.

Apesar de tudo, sei que poderia ser pior. Não estamos todos no mesmo barco. Se esta minha quarentena acontecesse em solidão, no Equador ou no Sudão, num qualquer campo de refugiados do mundo, num bairro de lata perto da minha cidade do coração. Se esta minha quarentena acontecesse na rua, sem casa, numa tenda na fronteira entre a Grécia e a Turquia, em Gaza onde Israel continua a bombardear escolas e praças, ou num Brasil governado por um tonto irresponsável, poderia ser pior.

A única certeza que tenho, para além do amor incondicional daqueles que nunca me abandonam, é que o meu coração tem de se preparar para o que quer que aí venha. Hoje mais do que nunca é preciso cuidar da minha casa interior. Hoje mais do que nunca é preciso acordar com as andorinhas e esticar o corpo como os gatos para receber o dia. Caminhar pela casa e abrir as janelas. Lavar as mãos, o rosto e cantar mentalmente duas vezes os parabéns. Ligar o rádio para ouvir as notícias da manhã. Abrir a porta do quintal para deixar entrar o cheiro do jasmim. Fazer o café, partir o pão e celebrar cada refeição do dia. Dar graças. Fazer as compras para quem precisa e caminhar pelos matos, na barragem. Hoje mais do que nunca é preciso encher os olhos de água e escutar os pardais, os cachapins e o seu agitar das asas por entre os juncos. Hoje mais do que nunca é preciso apanhar funcho, acelgas, mantrasto e no regresso a casa, limpar, arrumar, lavar, deitar fora, organizar. Enfrentar o desorganizado escritório e arrumar os livros. Limpar o pó. Dividir autores, alfabetar, escrever, ler... reler. Descobrir o que nunca se leu. Esvaziar caixas. Rasgar papéis. Arrumar estantes. Conseguir enganar o caos interior. Ser verbo e gerir no silêncio esta inquietação surda, pois no silêncio moram todas as histórias que temos dentro.

Só o silêncio, o tempo e o trabalho para ensinar a gerir os inomináveis. Só o tempo para nos ajudar a pensar neste confinamento imposto, nesta incerteza certa e nos mistérios da vida e da morte. O tempo talvez nos ajude a reaprender a humanidade. Talvez nos dê a verdadeira dimensão da urgência de cuidar. A Terra dá sinais, regenera-se, recupera da usura humana, do consumo. Talvez seja possível, muito em breve, voltarmos a sentir-nos plenos e como ela, a nos reinventarmos. Por ora, respiramos.

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