A ideia de Europa de Steiner

Se o status quo europeu não for considerado aceitável, como achamos que não é, é essencial admitir a ideia de que é preciso avançar com os Estados que queiram avançar, porque fazê-lo com todos é virtualmente impossível.

É quase um lugar comum começar um texto destes citando George Steiner. Mas é impossível resistir. A sua palestra (depois publicada em livro) A Ideia de Europa é encantadora. Diz assim: “A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa, frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter­-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa.” 

Percebe-se por estas palavras que Steiner concebe a Europa como uma identidade cultural. Tem razão. E é a partir daqui que devemos pensar a União Europeia. Ela não é um projeto económico e monetário. Ela é uma “unidade na diversidade” de culturas. Aqui está a sua Constituição não escrita, a sua bandeira, o seu verdadeiro hino e a sua doutrina. E é por aqui que ela pode avançar. 

Vem isto tudo a propósito da recente entrevista de António Costa à agência Lusa. A fazer fé na forma como ela é transcrita, o primeiro-ministro questionou se “a Holanda quer ficar de fora da UE”. Para não haver dúvidas, citemos as suas palavras: “Mais do que uma questão económica ou financeira, é uma questão política que está colocada. Temos de saber se podemos seguir a 27 na União Europeia, a 19 [na zona euro], ou se há alguém que queira ficar de fora. Naturalmente, estou a referir-me à Holanda.”

Não sei se, tal como a peça sugere, o chefe do Governo português coloca a questão da saída dos holandeses da UE. Se sim, é apenas um absurdo. E este texto acaba aqui. Se não, suscita uma questão que merece ser discutida: a de a Europa ter de avançar na resposta aos efeitos económicos gerados pela crise do novo coronavírus a “múltiplas velocidades”. Em rigor, a questão é ainda mais vasta, consistindo em saber se a União Europeia, para além desta pandemia, apenas pode avançar desta forma.

Analistas da integração europeia, como Andrew Moravcsik, Simon Hix e Joseph Weiler, concordam que a UE se encontra perto de um ponto de equilíbrio. Isso significa que é pouco provável que os Estados decidam mudanças unilaterais, mas também que decidam mudanças consensuais. No entanto, é possível que grupos de países decidam avançar (ou retroceder) de maneira diferenciada. Este cenário tem tido má publicidade até hoje, mas é essencial reavaliá-lo.

Aqui há duas hipóteses. Se o status quo europeu é considerado satisfatório, não é preciso perder tempo a discutir grandes mudanças, mas sim pequenos ajustamentos. Se o status quo não for considerado aceitável, como achamos que não é, é essencial admitir a ideia de que é preciso avançar com os Estados que queiram avançar, porque fazê-lo com todos é virtualmente impossível.

A segunda hipótese, que nos remete para a tal “Europa a múltiplas velocidades”, não é à partida a mais favorável a Portugal, pelo que ela deve ser exclusivamente encarada como a última das soluções, depois de todas as outras falharem. Contudo, caso a Alemanha e a França alinhem por esta via, ou caso esta seja a única forma de fazer avançar a integração europeia, então Portugal não só não se deve opor a ela como deve estar dentro da “primeira velocidade”. De resto, na prática, isso já acontece em certas áreas.

Voltemos à questão atual. A UE terá de responder a esta crise com “bazucas”, ou mesmo com “armas atómicas”. Chamem-lhe “Plano Marshall”, ou “Plano von der Leyen”, ou mesmo “Plano Mark Rutte”. Sejam “coronabonds”, ou eurobonds, ou algo semelhante, com a modalidade e o nome que a originalidade permitir. E aqui também há duas hipóteses, aliás previstas no já esquecido Livro Branco da Comissão sobre o Futuro da Europa: ou fazemos “muito mais todos juntos”, ou faz “mais quem quiser mais”. Se a Holanda não quiser fazer mais, não faça, se quiser ficar de fora, que fique. Desde que a Alemanha queira fazer mais e fique dentro. A França quer.

Claro está que subsistem muitas dúvidas sobre a viabilidade política desta solução, sobretudo neste caso, em que estamos a falar de um verdadeiro “resgate da Europa”. Mas vale a pena tentar.

Curiosamente, George Steiner proferiu a sua palestra na Holanda, em Amesterdão, no Nexus Institute. E a ironia continua, nas linhas do seu belo texto: “Pode ser que estas palavras sejam insensatas, que seja demasiado tarde. Espero que não, só porque estou a dizer estas palavras na Holanda, onde Ba­ruch Espinoza viveu e pensou.” O próprio responde à questão de nós todos, os angustiados com o destino da Europa: “Enquanto existirem cafetarias, a ideia de Europa terá conteúdo.”

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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