Arrendamento: a desigualdade também nas medidas

Num país sem habitação pública (2% apenas) e em que a maior parte do salário é gasto na renda da casa ou no crédito ao banco, é um erro que a solução seja endividar quem enfrenta esta fase com perda de rendimento. No entanto, as medidas existem e exigem que olhemos para elas com cuidado.

As respostas que o Governo aprovou, nesta fase de pandemia, para fazer face à crise na habitação, são manifestamente insuficientes. Num país sem habitação pública (2% apenas) e em que a maior parte do salário é gasto na renda da casa ou no crédito ao banco, é um erro que a solução seja endividar quem enfrenta esta fase com perda de rendimento. No entanto, as medidas existem e exigem que olhemos para elas com cuidado. É que, entre dever ao senhorio ou ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana​ (IHRU), poderá haver diferenças.

A hipótese de pedir um adiamento do pagamento da renda ao senhorio – desengane-se quem fala em suspensões de renda – é a que mais desprotege os inquilinos. Isto porque, passada esta fase, tudo o que não se pagou terá de ser pago em 12 prestações mensais que se somam à renda normal. Para além disso, o inquilino que posteriormente pretender cessar o contrato para se mudar para uma casa com renda mais baixa, é obrigado a pagar de uma só vez a totalidade do valor em dívida.

Com esta opção, o Governo optou por pressionar os inquilinos a manterem-se vinculados às rendas que tinham antes desta crise, muitas delas especulativas. Todos sabemos que haverá baixa no mercado de arrendamento; obrigar através de uma chantagem que mantém os valores actuais é errado e trará muitos conflitos. Já para não dizer que reforça uma narrativa falaciosa: a de que quem arrenda não cumpre os seus compromissos. Uma interpretação algo repugnante.

A solução de pedir um empréstimo, sem mais, ao IHRU, significa também mais dívida para quem terá, possivelmente, mais dificuldades. Propor esta solução sem exigir a revisão do valor da renda em linha com as regras existentes para rendas passíveis de apoio público - como as rendas tabeladas no âmbito do programa de Renda Acessível ou ainda do Porta 65 jovem - consolida opções do passado, injustas e desreguladas. É, no entanto, a proposta menos agressiva para os inquilinos no futuro. 

Neste âmbito, é necessário esclarecer que o empréstimo sem juros que o IHRU concede não cobre a totalidade da renda, mas sim o valor desta que excede a taxa de esforço de 35%. Sabendo-se que, em Portugal, a taxa de esforço já ultrapassa em muitos casos os 35% - chegando a mais de 58% na cidade de Lisboa - percebemos que esta medida permite que os inquilinos paguem menos neste momento, garantindo o IHRU o excesso da renda que os sobrecarrega. Deveria ser menos? Devia, segundo a ONU a taxa de esforço aceitável é de 30%. Este excesso deveria existir? Não, mas isso seriam outras medidas que o Governo não parece estar disposto a adoptar.

As diferenças entre uma medida e outra são relevantes e só ficaram claras na publicação recente no site do IHRU. Em primeiro lugar, o apoio do IHRU começará a ser devolvido num prazo “nunca inferior a 6 meses”, ao contrário do adiamento das rendas, que terá de começar a ser pago no mês seguinte ao fim do Estado de Emergência. Em segundo lugar, no caso de incumprimento, não haverá lugar a despejo nem haverá lugar ao pagamento total ao IHRU no cancelamento do contrato por iniciativa do inquilino, uma vez que a renda continuou a ser paga ao senhorio. Por fim, é feito o “reembolso em prestações mensais, cada uma no montante 1/12 do valor da renda”, o que poderá levar a um aumento do tempo de pagamento e leva a uma menor prestação de pagamento. Relembro que no adiamento sem apoio cada prestação corresponderá a 1/12 da dívida total. Como se percebe, a prestação a pagar ao IHRU será sempre menor, uma vez que será calculada pelo valor da renda e não pelo valor de várias rendas em atraso. 

Como se percebe, estamos perante diferenças de valor mensal substanciais, sendo que a medida relativa ao IHRU permite não só um período mais alargado até se começar a pagar, mas também que a dívida seja paga de forma mais faseada. Não sendo o ideal, faz demasiada diferença, desde logo no rendimento mensal disponível, começar a pagar já ou daqui a 6 meses; assim como faz diferença pagar em 12 meses ou poder pagar em mais. Não será também igual ter essa dívida regulada por uma instituição estatal com responsabilidades no âmbito da habitação, ou estar em dívida no mercado especulativo da habitação.

Numa Lei insuficiente, há, como vemos, medidas mais insuficientes que outras. Para o futuro, ficará a mesma pergunta de sempre: estará o Governo disponível para ter políticas públicas que assumam que o mercado não resolverá, como nunca resolveu, o acesso a um direito fundamental?

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