Velhas e novas elites em tempo de pandemia

A crise revela que as fantasias não salvam o mundo, mas o trabalho competente. Estou a pensar nas pessoas que em todo o mundo ajudam de muitas formas no combate à pandemia ou contribuem para a reconstrução das comunidades.

Elite é tecnicamente quem está no topo de uma atividade humana. Em todas as atividades humanas há elites, que podem ser boas ou más, consoante as suas virtudes. Utilizo aqui virtude no sentido técnico de comportamento eficaz e honesto.

Claro está que podemos conceber as elites sem a dimensão moral. Há, por exemplo, elites de ladrões muito eficazes, mas que ferem e, no limite, matam a comunidade política, sendo, por isso, moralmente inaceitáveis.

A pandemia em curso é reveladora do poder e comportamento das elites existentes e das pessoas comuns que confiam ou não nelas. Para muitos descrentes da democracia, as pessoas comuns não contam ou devem ser manipuladas para defenderem outros interesses que não os seus.

Há também quem pense o contrário. Em 29 de outubro de 2018, João Miguel Tavares publicou neste jornal um artigo intitulado “Nós, as elites, não percebemos nada de nada”, em que afirma que as elites artísticas, intelectuais e jornalísticas deixaram de mandar nos eleitorados, que agora decidem por sua própria cabeça. Prova disso é que os brasileiros elegeram Bolsonaro, mesmo apreciando Chico Buarque e Caetano Veloso, que apelaram ao voto em Haddad. Segundo esta tese, os líderes políticos são agora instrumentos de quem intervém nas redes sociais e escolhe quem defenda convenientemente os seus interesses, mesmo que não tenham qualidades técnicas ou morais. Curiosamente, no discurso que proferiu nas celebrações oficiais do dia 10 de junho de 2019, João Miguel Tavares, ao contrário do que disse no artigo referido, colocou-se retoricamente fora das elites para pedir aos políticos que lhe dessem, como pessoa comum, qualquer coisa em que acreditar.

Estes exemplos mostram que as pessoas comuns podem muito, mas não fica provado que não seguem as elites. Provavelmente escolhem as elites em quem confiam, desse modo contribuindo para a emergência de novas elites.

O tempo em que vivemos, marcado por uma forte incerteza, é propício à renovação das elites. Pessoas que até ao momento não se destacaram, passam a ser reconhecidas e respeitadas pela opinião pública, pelas suas ideias e comportamentos, tal como os grupos a que pertencem. O caso mais evidente é o dos que estão na linha da frente no combate à pandemia. Dificilmente no futuro próximo as pessoas se esquecerão que médicos e enfermeiros existem. Por outro lado, as mensagens pedagógicas de alguns jornalistas têm tido grande eco social, assim como as palavras do “velho” Ramalho Eanes, de apelo às virtudes cívicas dos antigos, que mostram que não existem conflitos de gerações, mas de mentalidades. Uma pessoa velha pode ser nova e vice-versa, na defesa de princípios e ideias.

A realidade mostra que estamos perante uma crise grave que só pode ser vencida por uma comunidade unida e de pessoas virtuosas. Como é próprio da política, continuará a haver governantes e governados, mas que devem poder confiar mais uns nos outros, para o bem de todos.

Deixo quatro apontamentos sobre as implicações do tempo exigente em que vivemos para a dinâmica política e social:

A crise revela a importância para a comunidade política dos que combatem a pandemia e em geral de todos os que respeitam as regras de boa convivência. Estas pessoas enfrentam os problemas porque sabem que têm muito a perder, se não o fizerem. Isso dá-lhes uma força moral e anímica enorme, pelo que é um erro escolhê-las como inimigas.
A crise revela que os acasos e os oportunismos não ajudam à resolução dos problemas. As soluções virão sempre da concertação de esforços e do trabalho sério e honesto de quem aposta no bem comum e não só no interesse próprio.
A crise revela a insanidade solene de algumas pessoas que colocam em perigo os seus concidadãos e o mundo. É o caso de demagogos que contrariam os conselhos científicos e técnicos em relação à pandemia. Ainda hoje a melhor definição que tenho para demagogo é a de pessoa que se alcandora a uma altura que não é a sua.
A crise revela que as fantasias não salvam o mundo, mas o trabalho competente. Estou a pensar nas pessoas que em todo o mundo ajudam de muitas formas no combate à pandemia ou contribuem para a reconstrução das comunidades.

Decorre do que eu disse que o ideário democrático continua válido como o governo das pessoas, precisamente porque as pessoas, na diversidade de funções e tarefas, estão no centro da dinâmica social, com as suas competências e responsabilidade. Por um lado, a crise mostra que as respostas políticas devem contar com a colaboração empenhada de todos e ser para todos. Por outro lado, torna-se evidente que a democracia se fortalece com elites abertas às pessoas comuns. Pertencer a uma elite não é fundamentalmente uma questão de idade, estatuto ou origem social, mas de disponibilidade, competência e honestidade para ajudar a família, a entidade para a qual se trabalha ou a comunidade política.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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