Depois não se queixem

Já se gastaram todas as analogias possíveis entre esta pandemia e um campo de batalha. No entanto, esta guerra que não é civil, nem fria e muito menos santa, obriga-nos a invocar o que de mais humano há em nós: o respeito pelo outro.

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Miguel Manso

Como uma rémora que nunca larga o seu tubarão, assim deveriam ser a responsabilidade e a liberdade. Daqui a cerca de um mês, iremos assinalar os 46 anos da nossa democracia. Se até agora nunca tivemos de provar ser merecedores dessa conquista, talvez este seja o momento ideal para o fazermos.

Os apelos chegam de todos os lados. Desde Itália, onde podemos ver o presidente da câmara de Bari em completo desespero a mandar os seu eleitores para casa, até à “nossa” Cristina Ferreira que, todas as manhãs, implora para que nos mantenhamos nos nossos lares. Se cada um de nós, sem excepção, sabe perfeitamente o que tem de ser feito, então porque não cumprimos? É assim tão complicado?

Existem dois extremos no que toca ao zelo. Por um lado, temos aqueles que são extremamente cautelosos. Por outro, podemos ver aqueles que desvalorizam tudo, como se estivessem cobertos por um manto de imortalidade. Esta é uma forma que muitas pessoas encontram para lidar com as más notícias. Desmentem-nas, descredibilizam-nas e empurram-nas para debaixo do tapete, acreditando que dessa forma deixam de ser verdade. A negação da realidade consegue ser um subterfúgio bastante aconchegante, e até pode ser tolerável numa fase inicial. No entanto, no momento em que nos encontramos, a ignorância já deixou de ser uma imposição e passou a ser opcional.

Antes de tudo o que estamos a viver, o umbiguismo e o egoísmo já pautavam o nosso dia-a-dia. Não era difícil encontrar carros em segunda fila, lixo a ser atirado para o chão ou dejectos de animais por apanhar. Coisas pequenas que nos incomodavam ligeiramente, mas que estavam longe de colocar a nossa vida em risco. Contudo, quando menos se esperava, o paradigma mudou.

Apesar de nos julgarmos muito evoluídos e avançados, virando a cara sempre que a calamidade está a um continente de distância, a verdade é que não somos assim tão espectaculares como julgamos. Somos humanos, frágeis, vulneráveis e fazemos de tudo para resistir à mudança. Adoramos reagir em vez de prevenir, daí a preocupação só chegar quando somos atingidos.

Já se gastaram todas as analogias possíveis entre esta pandemia e um campo de batalha. No entanto, esta guerra que não é civil, nem fria e muito menos santa, obriga-nos a invocar o que de mais humano há em nós: o respeito pelo outro. Se juntos somos mais fortes, para quê insistir em não olhar pelo quintal do vizinho?

Esta é uma nova forma de austeridade: intangível, abrangente e silenciosa. Temos pela frente, seguramente, uma das maiores provas das nossas vidas enquanto sociedade e de nada serve negá-lo. Os desafios foram feitos para serem superados e não ignorados. Em plena ditadura, o capitão Salgueiro Maia incitou-nos a desobedecer. Passados todos estes anos, atrevo-me a adaptar uma das suas célebres frases e a dizer-vos: “às vezes é preciso obedecer”.

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