A lixívia e os tempos antigos

Os trabalhadores continuam com um sorriso franco. Conscientes que naqueles corredores de supermercado poderá estar o perigo. “Temos que andar. Se não formos nós, quem o fará?” Mesmo em tempos de isolamento por causa da pandemia do novo coronavírus, há quem não consiga ficar em casa. Nos próximos dias, a crónica fotográfica Picar o Ponto apresenta sete profissões que não podem parar.

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Adriano Miranda
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São 12h15. Não é difícil perceber onde é o supermercado. Numa das ruas mais movimentadas da cidade do Porto, encontrar estacionamento nunca foi tão fácil. Não há trânsito no alcatrão nem pessoas na calçada. As poucas que por lá andam procuram o supermercado e um restaurante ao lado, barricado com uma mesa à porta. take-away. No restaurante, duas pessoas esperam. No supermercado, a longa fila tem cinco pessoas. Longa não pelo número, mas pelo distanciamento. Quatro idosos e uma jovem esperam a sua vez para entrar. Também aguardo pela minha vez.

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A irritação na garganta dá sinais. Inevitável a tosse. Há quem olhe para mim desconfiado. Dá até um passo mais para a frente. Alguém me diz “isso está mau”. Ofereço um sorriso enquanto bebo um golo de água. “Melhores dias virão”, digo eu. E a conversa surge naturalmente. À distância. “Parece os tempos das senhas de racionamento.” Ainda se lembra. “Era criança e a minha mãe mandava-me ir buscar o arroz e a farinha. Tempos da fome. Mas se a pandemia continuar, vamos voltar a tempos antigos.” A espera é demorada e a impaciência começa-se a notar. Começo a pensar nas zonas do globo onde a procura por comida é a luta diária. Onde as filas são enormes para supermercados vazios. E onde nem sequer existem filas porque nem sequer existe comida. Naquela artéria do Porto, sabemos todos, os impacientes, que lá dentro temos os repolhos, as maçãs, os iogurtes, o peixe, o papel higiénico e o desodorizante. Talvez falte o álcool. Para quê ser impaciente?

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Mariana tem um ar simpático. Alegre. É a responsável de loja. Percebe-se que transpira dinâmica. Vamos até ao armazém e pede desculpa pela confusão. “O camião chegou bem cedo e nós tivemos que repor as prateleiras. Ainda não sentimos falta de nada.” Num corre-corre, funcionários levam garrafas de água, sacos de batatas, paletes de leite. Na loja colocam-se preços, alinham-se os produtos a preceito. Alguém pede puré congelado. Depois perguntam se têm graxa para os sapatos. E as peras têm um óptimo aspecto. Nos corredores estreitos, ninguém toca em ninguém. Esperam para chegar às bolachas ou ao atum em lata. Os clientes tentam ser o mais expeditos possível. Outros estão no passeio à espera da sua vez.

O senhor João já é cliente habitual. É vizinho. Leva lixívia. E café. “Um homem não vive sem café. E, pelos vistos, agora também não vive sem lixívia.” Deseja um bom dia para todos. Os funcionários retribuem quase em coro. Os clientes vão saindo e entrando. Uns com máscaras, outros com luvas. Outros sem nada. E aquelas trabalhadoras e trabalhadores continuam com um sorriso franco. A trabalhar. Quase como se nada fosse. Conscientes que naqueles corredores, onde o marketing nos abre o apetite, poderá estar o perigo em forma colorida. Mas como desabafa Mariana: “Temos que andar. Se não formos nós, quem o fará?”

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No cartão de memória da minha máquina fotográfica trago a Mariana, o senhor João, o saco de batatas, os trabalhadores. E na minha memória trago a fome e as senhas de racionamento e um grande ponto de interrogação. Quando começarei a trazer a fome no cartão de memória? Poderá estar por um fio, e não há lixívia que nos salve.

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