Sobre o presencial

É no espaço presencial não massivo que o “vírus” da democracia real e presencial, agora suspensa, pode aprofundar-se e expandir-se de forma qualificada.

Na sociedade

Há uma dimensão do presencial que equivale a democracia real e não só formal, esta pode ser institucional e ao mesmo tempo simulacro é o trânsito das ideias no espaço público presencial — qualificado e qualificante — que estabelece a raiz do sistema, a sua democraticidade constante.

A democracia real não existe em quarentena, é absurdo falar de estar livre em prisão, qual seja. A expressão pública do pensamento necessita de espaços abertos, o contrário do confinamento. Estes espaços fazem-na respirar, são pulmonares, muitos deles nas margens e não no centro, práticas cívicas amplas, ideais e artísticas, combativas e não rotina institucional ou afirmação reactiva à agenda governamental programada e relacionada com as agendas dos outros poderes institucionais, eleitos, nomeados ou corporativos.

O confinamento é a “liberdade” dentro de muros, paredes, quer dizer essa liberdade que as paredes deixam crescer, para dentro e para um fora que são outros também dentro de paredes. Neste caso a “comunicação”, mediada e mediatizada, digital, tecnológica, pode até exceder em fluxo e densidade o que é normal, engarrafar mesmo, engarrafar dentro dos cérebros que a consomem de modo desprevenido, conforto ideológico servido ao domicílio, formas de entretenimento ou publicitárias, propagandísticas. O que escapa é residual e confere a ilusão do que fosse um espaço crítico, na realidade o lixo comunicativo não selecciona, arrasta, é um arrastão geral. O presencial articulado com o confinado é que pode alterar-lha a natureza, essa relação é essencial à possibilidade crítica para que rompa a margem, a condição residual, o confinamento social estabelecido sistemicamente.

Nos tempos da velha senhora as pessoas escondiam o que pensavam e mesmo em espaços fechados escondiam o que pensavam de outro e outros. Em Terror e Miséria Brecht expõe bem o que é o medo socialmente imposto e a miséria moral, a absoluta subserviência, a sobrevivência: o episódio da criança que vai comprar uma guloseima e que logo se suspeita ser delator dos pais, imaginado pelos próprios pais, é uma história que assusta — é o vírus do medo. De facto o medo “educa” para o medo, paralisa a acção e a reacção, impõe a aceitação complacente do excesso a-democrático ou anti-democrático — é aqui que faz sentido falar de um mutismo socialmente generalizado que grita, de paredes com ouvidos, de silêncios perfilados de medo. Neste caso, o confinamento imposto de fora policialmente e interiorizado, cumpre-se dentro: é o regime da não liberdade, a delação, o tribalismo vigente, a fidelidade ao líder a igreja única, o vizinho um inimigo potencial, a comunidade uma inexistência, a militarização da vida a regra.

O trabalho político da clandestinidade foi e é o contrário da sua possibilidade pública. Esta é a dimensão mais evidente da necessidade do presencial que nenhuma forma mediada de comunicação substitui — reuniões, assembleias, manifestações, revoltas de rua, ajuntamentos, são formas públicas de agir só possíveis no regime inter-presencial comunitário, assembleiístico, formas de democracia prática, escola aberta. “Toca a circular” dizia o agente de serviço quando topava mais que três pessoas numa esquina.

A ideia de que se exerce a liberdade nos media é ilusória, tanto pela natureza destes meios, como pela separação física de quem comunica — não, não é a mesma coisa, nem gera os mesmos resultados qualitativos de pensamento emergindo, mobilidade dos pontos de vista em jogo, de mudança de perspectiva. Se se diz que o TM (ligação umbilical tecnológica ao mundo global e local, entre a trela e o que se pode chamar de respiração psíquica rotineira) é uma espécie de fechamento de cada um sobre si mesmo, de expressão narcisa — vemo-nos olhando-nos mas também ouvindo-nos, o deleite narciso da escuta é mais ou tão forte que o visivo — tal esquema de prótese instalada no cérebro, de extensão instrumental do corpo, com a quarentena, aprofunda-se. O fechamento é agora duplo, de si consigo e entre paredes — a pausa relacional em presença, intervalar, quase se extingue e a entrega a tempo inteiro ao ecrã audiovisivo — em todos os aparelhos audiovisivos — é absoluta, mesmo o sono, o sonho, o prolongamento do dia, se faz na inércia dessas práticas de dependência — fala-se mesmo de formas de patologia comunicativa e de uma medicina específica. A totalidade dos nossos gestos também se vê afectada pelo que os aparelhos produzem a favor de uma espécie de “sono da razão”, constante, o corpo descorporifica-se, paralisa o que o faz corpo desde os tempos imemoriais das sociedades em que corpo e instrumento eram uma e a mesma entidade.

Quando acontece uma relação “comunicativa” de mais que dois, em conferência, tipo cadeia de montagem — o que nada a tem a ver com espaço público mas com espaço tecno-fabril e tecno-imagético, organização para-laboral, o entretenimento faz parte —, o que se concretiza é um regime de opinião à vez, a somar, para um resultado encadeado e não partilha simultânea em presença, colectiva-subjectiva, capaz de gerar energias ideais e prospectivas.

As liberdades são mais que as profissões que delas decorrem na sua suposta defesa e afirmação, isto nos regimes em que as eleições determinam alguma coisa — não muito, muito menos as transformações radicais necessárias. Mas claro, sem essas liberdades nada se pode gerar gradativa e aprofundadamente pró mudança radical tirando-se exactamente partido de um regime de liberdade de pensamento e expressão crítica públicos que podem qualificar essa mudança — a questão hoje não é a tomada do poder mas a qualificada hegemonia crítica e cultural que pode fundar a sociedade do comum, da igualdade na diferença, da partilha e distribuição equilibrada das riquezas, produzidas e naturais, no respeito íntegro das ecologias ambiente. Nas condições demo-liberais, no entanto, têm sido mais as seitas e igrejas do acéfalo a progredir, assim como a política corrupta, arregimentada, confortada com o status quo directa ou indirectamente e as extremas direitas, que espreitam o desastre pandémico com olho guloso.

A progressão das forças contra a perspectiva da democracia devem-se à característica liberal burguesa das democracias actuais, determinadas pelo financismo globalizado e pela sujeição do político ao económico, em que justamente o espaço público é um poluído, contaminado pelo exercício dominante das lógicas poderosas do mercado que exercem os seus poderes através dos empórios do dinheiro que imperam nesse espaço — não há rede pública, independente desses poderes, que tenha meios de afirmação ideais e críticos numa correspondência proporcionada de poderes de influência real, isto é, aqueles que pela força da passividade resistente ou da acção orientada, são força material objectiva, energia de mudança.

A força mediática e informativa própria das organizações partidárias independentes das forças do capitalismo real é quase nenhuma, a possibilidade de exercerem uma qualquer progressão de hegemonia cultural própria é quase nenhuma e os seus modos organizativos de agir e “existir” são amplamente contaminados pelo próprio sistema demo-liberal que combatem. Isso acontece nas práticas diárias e nos modos de “acção” — as mais das vezes retóricos e proclamatórios — tantas vezes plenos de “cega sensatez popularucha” e claramente capitalistas — com todos os vícios conhecidos — na gestão das autarquias. A ideia de revolução permanente era e é vital, uma sociedade democrática é a aliança entre o escrutínio qualificado jurídica e praticamente do desvio que a corrompe com a qualidade da hegemonia crítica cultural do espaço público real, presencial e mediático.

O teatro

O teatro define-se pela presença de corpos em acção e no processo da reconfiguração artística do real que essa acção narra ou “reconfigura fragmentariamente”, não mimeticamente. Isto é, virtualiza o real com meios técnico-artísticos e vitaliza-se na interacção cena/sala, como objecto de leitura, re-ficcionado e crítico, inteligido, pelos espectadores. Isso “acontece” no balanço — aqui em sentido musical — dessa energia convertida em células de sentido — escrita —, fabricada na interacção. Os espectadores agem, a sua passividade é um mito, isto é, a confusão entre estar concentrado e supostamente parado é resultado de uma ânsia infantil, o que, por outro lado, não são também as formas rotineiras-burguesas de roçar o cu no veludo das poltronas e outras actividades convencionais de cemitérios. Nesta hipótese, de uma comunicação determinada pela lógica comercial, estamos no mundo do sistema que impera. Escapando a isso, estamos nas margens, nos acontecimentos mistos, nas salas rafeiras, na comunidade por vir.

Tentamos aqui falar de modo prospectivo e modelar, em função de um paradigma comunicacional que, paradoxal, como diz Diderot, estabelece bem os modos de afirmação da razão emotiva e da emoção racional numa dialéctica intrínseca — Clairon emocionava com a sua “frieza” de estilo e Dumesnil lançava a confusão mental com o seu registo dramático empolgado.

A vida nua é a total impotência face à potência governativa e legal, é a sujeição aos vínculos hierárquicos estabelecidos, a dependência das cadeias de comando ordenadas socialmente.

Hoje vivemos, de um modo geral e global, por razão das camadas de sentido naturalizadas culturalmente por via histórico-quotidiana — como na arqueologia — numa constante possibilidade de viajar no tempo, os tempos são convocados ao presente como cenários de entretenimento em catadupa e vivemos expostos constantemente a um espectáculo do presente produzido pelo sistema mediático. Espectáculo que o eterniza artificialmente e que faz confundir-se com o futuro, negando a este a sua possibilidade de vingar — é a presentificação de tudo. Vivemos submersos nessa sobre-realidade que faz de cada um de nós um sujeito impotente imerso num fluxo interminável de vida real, só desligando com a morte. Vivemos agidos por mecanismos relacionais concretos, conformados às rotinas organizadas do hiper-consumo e hiper-controlo de massas, entregues ao poder aleatório da distopia.

Dito isto, repete-se, o teatro é acção dos corpos em presença, a cena e a sala em interacção de fluxos de sentidos concretizados em triangulações sucessivas de jogo físico-narrativo num tempo e espaço precisos. A sala, entretanto, age e reage, de maneira una, aparente, de forma múltipla, na verdade, já que um conjunto de espectadores é, em contexto de fruição teatral não demagógico, uma comunidade de pessoas, um todo feito de partes e de singularidades, de contradições. Há um modo de ficcionar que é da sala, a sua escrita feita de silêncios, sorrisos, gargalhadas, de expressões de surpresa sonantes, de comentários, de entre-olhares inesperados, de reacções não convencionadas, de aplausos e mutismos, de movimento emotivo, de respiração suspensa. A sua acção é tão rica quanto a cena o for de modo qualificado e rigoroso. O que produz uma interacção enérgica propulsora de energias inventivas e de força crítica é a qualidade e rigor da actuação em cena, concretizada pelos actores em perfeita consonância crítica com a qualidade do que dizem, falas, frases, texto e pontos de vista elaborados, ensaiados, corpos desenhando-se activamente no espaço a três dimensões, nos modos de agir os textos, os diálogos, os monólogos, as falas, todas as outras armas de criação de sentido, de sentidos, no trabalho dos gestos e da sua escrita articulada com as palavras.

Sem a presença o teatro é ausência, inexistência. É uma questão essencial, ninguém nada no vazio, não há conversão do presencial a nenhum modo da sua simulação técnica ou tecnológica.

Num ensaio — répétition — de O Sonho de Strindberg, no Dramaten Bergman pôs uma senhora na rua por ter espirrado. Era um ensaio geral e suposto que o fundo silêncio não fosse objecto de nenhum modo de ruído distractivo. A qualidade da troca ideal e enérgica passa pelo alto nível dos modos qualificados dessa troca. Desde logo a partir do texto que se dá a partilhar, Hamlet ou Fim de jogo, perto da vida mas longe da acrítica corrente, do não pensado que joga e faz funcionar o sistema. O sistema vive do e instalado no fluxo. O teatro vive da suspensão do fluxo. No teatro não estamos ao serviço das lógicas de uso do tempo que fazem funcionar, estamos no contraponto desse modo de uso do tempo, como na poesia, tudo pára: é nesse momento em que emerge o puro sensível, o que foge à formatação, que nos podemos libertar do que funciona, do modo como somos peões da engrenagem maior e globalizada e sentir/pensar/gozar.

Os modos do presencial

Os modos do presencial são no entanto múltiplos e contraditórios, de resultado contrário quanto ao sentido comunitário e fundo democrático, da manifestação ao futebol, da carga policial à fuga pelas ruas, do massivo à escala de câmara, dos sessenta mil (60.000) ou mil lugares (1.000) aos cem (100) do teatro íntimo, da refeição a vários ao encontro amoroso, do grupo ao casal, do solilóquio ao cântico grunho e homicida das bancadas de hooligans, do ioga ao exercício militar, etc.

O que interessa reter aqui, a meu ver, é que é no espaço presencial não massivo que o “vírus” da democracia real e presencial, agora suspensa, pode aprofundar-se e expandir-se de forma qualificada. Esse espaço é por certo a sala de aula, numa dada perspectiva, mas mais que todos, o espaço do teatro, que não é, nunca foi, de características massivas, pelo contrário, unindo e separando, na dimensão concreta da relação entre as partes no espaço o que podemos dizer ser a relação entre o íntimo e o político, entre o quotidiano e a história, um modo singular de ganhar auto-consciência por via de um prazer. É dessa clareza expressa nas relações reais que necessitamos, por contraponto para com todas as formas de persuasão do espectáculo, da propaganda publicitária e fetichista do mercado e do entretenimento.

Sugerir correcção
Comentar