Prisão e pandemia: o verdadeiro “distanciamento social”

A sobrelotação, apesar de diminuída em recentes anos, continua a ser a norma em muitas cadeias. Esta implica que celas e camaratas sejam espaços de intensa, mas precária, convivência onde reclusos, na sua maioria privados de ocupação, estão a ver e a ouvir os mesmos noticiários que nós.

Foto
Nuno Ferreira Santos

Por estes dias perpassa o país um assinalável consenso sobre a necessidade de enfrentar colectivamente uma emergência de saúde pública. Por todo o lado somos exortados a manter um “distanciamento social” — um termo equívoco que parece significar distanciamento físico — e a cumprir uma cidadania activa através da auto-reclusão. Sabemos, no entanto, que essa reclusão é relativa e imposta apenas pelo bom senso. Quando precisamos, saímos. Já a reclusão absoluta continua em vigor para cerca de 13 mil pessoas em Portugal e as suas privações e sofrimentos aumentam em devida proporção com as nossas.

A minha experiência de trabalho de campo permite-me fazer uma especulação informada acerca dos enormes desafios que se colocam às prisões portuguesas nesta altura. Pensemos, primeiro, na impossibilidade de haver “distanciamento físico” — esse, sim, necessário — entre reclusos/as. A sobrelotação, apesar de diminuída em recentes anos, continua a ser a norma em muitas cadeias. Esta implica que celas e camaratas sejam espaços de intensa, mas precária, convivência onde reclusos, na sua maioria privados de ocupação, estão a ver e a ouvir os mesmos noticiários que nós. A sentir o mesmo terror e tédio. Mas a multiplicar. Na eventualidade de uma contaminação, que soluções serão encontradas para o isolamento desses doentes? Que espaços serão inventados? E a que custo? E, mesmo antes de tudo disso, que meios de prevenção estão disponíveis a instituições que, em tempos de normalidade, dispõem de escassas respostas médicas?

Depois, ponderemos sobre a interrupção das visitas vindas do exterior, colmatadas apenas por três chamadas telefónicas diárias, cada uma de cinco minutos. Na prisão, que está do outro lado de um imenso fosso digital, saudade e ansiedade geram filas de reclusos/as para cabines telefónicas partilhadas, todos/as entretidos/as a escolher a quem ligar desta vez. Tudo a acontecer numa população que está desproporcionalmente em risco de suicídio. Finalmente, e retendo tudo isto, pensemos no pico da vulnerabilidade que representa a população encarcerada com mais de 60 anos. Em 2018 eram cerca de mil. Noutros países apelam-se indultos e libertações selectivas. Seguirá Portugal o conselho da ONU?

Escrevo em jeito de interpelação e não de queixa. Pretendo sobretudo chamar a atenção para os desafios que directores/as, guardas prisionais, técnicos/as, reclusos/as e outro staff vão ser chamados a enfrentar. A pandemia irá tornar apenas mais saliente o que já sabíamos: a prisão é muito menos impermeável do que se pensa; é atravessada por, e muitas vezes depende de, bens, pessoas e informação vindos do exterior. Durante este período iremos ter a oportunidade de provar que as pessoas reclusas são, de facto, concidadãos e concidadãs, usufruindo igualmente de todos os direitos menos de um. Ou então este será apenas um tempo para inventar novos castigos e de reforçar, esse sim, o verdadeiro “distanciamento social”.

Sugerir correcção
Comentar