China: dúvidas sobre “zero novos casos” de coronavírus em Wuhan

Autoridades poderão estar a esconder novos casos, suspeitam trabalhadores de hospitais. E há uma categoria inteira deixada de fora dos registos: os infectados sem sintomas.

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Hora da refeição numa fábrica em Wuhan, com distanciamento entre os trabalhadores Yi Xin/EPA

O quadro que Pequim está a mostrar de infecções por coronavírus não está a reflectir a realidade, diz o diário britânico Financial Times com base em várias entrevistas com médicos, enfermeiros e pessoal hospitalar em Wuhan e Pequim. Há suspeitas de que nem todos os novos casos estejam a ser registados, e há uma categoria que está a ser sistematicamente deixada de fora da lista dos casos oficiais: os infectados que não têm sintomas.

Na província de Hubei, onde está a cidade de Wuhan onde teve origem a pandemia, não foi reportado mais do que um novo caso por dia durante mais de uma semana, o que permitiu ao Governo dizer que o período de crise acabou, e decretar uma espécie de regresso à normalidade: muitas pessoas já estão a recomeçar a trabalhar, embora sob enormes medidas de segurança, distanciamento obrigatório nos postos de trabalho e refeitórios, desinfecções três vezes por dia dos postos de trabalho, por exemplo.

E mesmo pequenos passos foram já revertidos: se foi muito falada a reabertura dos cinemas (embora de um número de salas que representava apenas 5% do enorme mercado chinês, em províncias pouco centrais, e com filmes antigos), esta sexta-feira, passados dez dias, foi anunciado que os cinemas fechavam todos de novo, sem que fosse dada nenhuma razão. Poucos espectadores aproveitaram a reabertura: muitos temem que a situação não esteja ainda controlada e não querem expor-se a risco.

Pequim anunciou entretanto a suspensão de entrada de estrangeiros, dizendo que os casos novos de. covid-19 são importados. Esta sexta-feira os EUA e a Itália ultrapassaram a China em número de infectados, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

O Financial Times entrevistou vários médicos e especialistas que estão na China - a maioria falou sob anonimato - e que dizem que a situação em Wuhan pode ser pior do que as autoridades estão a mostrar.
Duas enfermeiras na cidade falaram ao diário britânico, dizendo que há números “escondidos”, que apesar de cumprirem os critérios para casos confirmados, não estão a ser incluídos nas contas.

“O pessoal de saúde diz que o hospital está a fazer tudo para controlar a contagem de novos casos”, disse uma das enfermeiras. “É extremamente preocupante continuar a publicitar que não há novos casos. É muito arriscado, e pode significar que os sacrifícios feitos em Wuhan e em toda a província de Hubei não valeram de nada”, queixou-se.

Além disto, as autoridades estão a contar os casos de pessoas infectadas que não têm sintomas, mas não a incluí-los nos casos confirmados, disse um perito de saúde que vive em Pequim. A agência governamental que faz as linhas de orientação sobre o que deve ser considerado um caso confirmado, diz o Financial Times, diz que os casos assintomáticos não devem constar no total de casos confirmados.

Doentes transferidos ou novos casos?

Esta distinção pode ser problemática porque mesmo que não se saiba como ou em que percentagem, as pessoas sem sintomas continuam a poder transmitir o vírus a outras. E o jornal local Caixin citava peritos dizendo que em Wuhan eram detectados, todos dias, “alguns, ou algumas dezenas, de portadores assintomáticos”, o que que dizer que não é possível ainda “concluir que a transmissão parou em Wuhan”.

O Governo mantém que estes casos não são um problema, porque lhes é ordenada quarentena durante a qual se observa se ficam com sintomas, e caso isso aconteça, são reclassificados como casos confirmados. 

Falando no geral, não no caso chinês, o director-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse na quarta-feira que as medidas de isolamento “são a melhor maneira de parar a transmissão para que quando forem levantadas, não haja um ressurgimento do coronavírus”. E deixou um alerta: “a última coisa de que um país precisa é de abrir as escolas e empresas e ser forçado a fechá-las logo a seguir por causa de um ressurgimento”.

O único especialista a falar sem ser sob anonimato no artigo do Financial Times é Cao Jingchao, um dos responsáveis da ala de farmácia do internamento de um dos hospitais de Wuhan. “Alguns hospitais perto transferiram para nós os seus doentes”, relatou. “Mas não fomos informados se eram novos casos confirmados, se eram doentes que ainda se mantinham nesses hospitais e, se fosse o caso, há quanto tempo estavam hospitalizados”, disse, notando que as fichas médicas dos doentes não foram disponibilizadas. ​

No dia 15 de Março, entraram no hospital em que trabalha cerca de 100 doentes com covid-19, alguns dos quais eram de outros hospitais. Quatro dias mais tarde, chegaram mais 20 doentes transferidos. O governo local anunciou, no seguinte, zero casos. Cao Jingchao suspeita que os doentes transferidos eram, na verdade, novos casos. 

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