Contra o medo, contra a morte: (ler e) escrever

E agora, neste tempo que vivemos, março de 2020? Ler alivia, e escrever também, contra o isolamento e o medo, e contra a morte.

Perante a possibilidade da morte, e perante o sofrimento, a dúvida, a precariedade, o medo (sim, o medo, essa medida essencial de se ser humano), estamos sempre sós, por mais acompanhados ou rodeados que estejamos. Sempre assim foi, sempre assim será. É a dimensão mais trágica, conquanto a mais certa, do ser-pessoa. E agora, neste tempo que vivemos, março de 2020? Agora, quando nos dizem que, por tempo incerto, temos que estar menos ou nada acompanhados, menos ou nada rodeados; quando não podemos tocar e enlaçar, esses milagrosos disfarces da solidão; quando grande parte dos paliativos do medo desapareceu ou está em agenda longínqua; e quando ele ganha um novo fôlego, concreto e com forma, a juntar àquele medo profundo e informe, aquela dúvida que nunca sara, que sempre nos acompanha, bem lá no fundo, mas tão presente (mesmo que nem sempre notada).

Quantos de nós, nesta altura, nessa irredutível solidão – antes mitigada por várias formas de vida agora colocadas em suspenso ou adiadas sine die, obrigando a uma confrontação connosco mesmos e com as questões essenciais –, perguntarão, como Bruce Chatwin, no seu livro derradeiro, e mimetizando a questão que Rimbaud se colocara na Etiópia, “o que faço eu aqui”? Quem sabe a resposta? Quem se atreve a responder ou a achar que sabe? E haverá respostas, haverá receitas, ou cada um sabe de si, dia a dia, passo a passo, sombra a sombra, numa tentativa (como é a vida toda) de enganar a certeza trágica de um fim (e mesmo de um caminho, quiçá) absolutamente singular, só?

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Para uns será de um jeito, para outros de outro. Ler poderá aliviar, escrever também, talvez mais; encontrar um sentido (ainda que provisório, ainda que sempre um “erro à espera de vez”), adiar, ou mesmo tentar enfrentar, as questões. Quebrar o isolamento, embora ele sempre nos possa ser devolvido, e em dobro ou mais, como na magnífica (e triste, tanto) cena dos espelhos no filme A Dama de Xangai. Sonhar com as respostas. Sonhar pode ser tentar dar a mão, abraçar, tocar, quando se não consegue, ou quando, como agora, se não pode, mesmo que se conseguisse. Como escreveu Clarice Lispector em A Hora da Estrela, em 1977 (outro mundo, porém o mesmo mundo, é sempre o mesmo), logo na dedicatória, e depois de invocar vários compositores, “não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé”. Como fazer isso agora? Tanto mais quanto (escreveu ela também): “Existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico.”

Escrever? Talvez. Uma ponte possível. Alguma coisa se tem de fazer. Joana, a protagonista de Perto do Coração Selvagem, de 1944, também de Lispector, ainda criança, pergunta à professora o que é que se consegue quando se fica feliz, o que vem depois de se ser feliz, o que se consegue sendo feliz. E a professora, depois de pedir para repetir a pergunta, diz-lhe que pegue num pedaço de papel, que escreva a pergunta e que o guarde durante muito tempo, e que quando for grande o leia de novo, pois talvez então possa responder, de algum modo, ou talvez isso não tenha importância.

Escrever, escrever uma vez mais. Mas para quem se escreve realmente? Como diz a narradora de Age of Iron, de Coetzee, livro que é uma longa carta daquela à filha: “To whom this writing then? The answer: to you but not to you; to me; to you in me.” E sobre o que se escreve? Diz ela também: “When I write about him I write about myself.” Pois, é verdade, sempre cada um, sempre a irredutível solidão. Mas, seja como for, ler alivia, e escrever também, contra o isolamento e o medo, e contra a morte. Bem reconhece a mesma (e quase moribunda) narradora daquele mesmo livro do Nobel sul-africano: “Death may indeed be the last great foe of writing, but writing is also the foe of death.” Pois é, ou ao menos pode ser. Chapeau.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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