Coronavirus e a lição escondida de Darwin

Esta crise do coronavírus e toda a crise económica que se adivinha pode ser um momento marcante para a nossa espécie humana, agora globalizada. Há vários sinais implícitos de uma luta pela sobrevivência.

É normal ver o nome de Charles Darwin associado à frase ‘survival of the fittest’, ou a sobrevivência dos mais aptos. O princípio do ‘comer ou ser comido’ e a luta pela sobrevivência aparecem muitas vezes associados ao biólogo inglês. Suportados nos ombros de Darwin, vieram muitos que justificaram comportamentos imorais utilizando Darwin para lhes dar um toque de validade científica. Herbert Spencer, filósofo e biólogo inglês e confesso admirador de Darwin, escreveu mesmo que a preocupação com os mais fracos era absurda, pois ‘todo o esforço da natureza é livrar-se deles’. Também Hitler foi influenciado pelo chamado Darwinismo social.

Apropriando Darwin, justificaram-se imperialismos, racismo e desigualdade social. A influência na sociedade da lógica ‘survival of the fittest’, e de um suposto gene egoísta, foi imensa e ainda o é no nosso dia-a-dia em muitos setores da política e economia. Mas é injusto atribuir a Darwin tal pegada. Recentemente, verificou-se que parte dos escritos de Darwin foram ignorados e uma das suas teorias centrais foi negligenciada. Essa teoria contradiz o retrato popular e científico de Darwin e está a ser revisitada por cientistas e ativistas sociais.

No livro A Descendência do Homem, Darwin usou duas vezes o termo ‘survival of the fittest’, que nem foi criado por ele, e pediu desculpa depois de o usar. Mas escreveu 95 vezes acerca de amor e 92 vezes acerca da sensibilidade moral do ser humano, como refere David Loye. Para Darwin havia duas maneiras de a evolução acontecer: ou os organismos se desenvolviam ao matarem-se uns aos outros ou ao cooperarem e trabalharem juntos. No que toca à evolução humana, Darwin considerava que esta advinha principalmente da sensibilidade moral inerente aos humanos. Para ele, este sentido moral que ajudava a espécie humana a sobreviver vinha da própria biologia. Darwin desenvolveu mais tarde a sua explicação para a nossa evolução moral, passo por passo, mas, como David Loye reconhece, esta teoria foi ignorada. O próprio Darwin escreveu sobre a sua frustração com a interpretação que fizeram das suas teorias.

Esta crise do coronavírus e toda a crise económica que se adivinha pode ser um momento marcante para a nossa espécie humana, agora globalizada. Há vários sinais implícitos de uma luta pela sobrevivência. E refiro-me entre a espécie humana, não propriamente pelo vírus. De Inglaterra, Brasil e Estados Unidos chegaram sinais implícitos de que a preocupação com os mais fracos (onde está a população mais idosa e parte da população menos idosa também) não era propriamente a maior preocupação da classe política, com pouca ação e avisos de que a economia não podia parar. Parecem agora estar a arrepiar caminho, apesar de tarde. As imagens de cenários apocalípticos, com prateleiras vazias, podem ter criado no nosso subconsciente uma ideia de perigo que levou a uma competição por bens. Uns, com recursos para tal, terão agora a despensa cheia. Outros, mais vazia e mais ansiosos com os tempos que se avizinham.

O que acontecerá quando a crise económica se acentuar? Se Darwin estiver correto, não poderemos esquecer que será com cooperação e trabalhando juntos que sobreviveremos. Isso significará que ninguém pode ficar para trás. Que os orçamentos dos Estados têm de cooperar com quem mais precisa. Que os membros da União Europeia têm de cooperar. Que a ajuda a África tem de acontecer. A segregação ‘nacionalista’ que arriscamos não é hipótese. Estamos, quer queiramos quer não, inextricavelmente ligados na economia, na alimentação, na energia, na saúde e na doença.

A nossa capacidade para proteger os menos aptos a enfrentar este vírus e os mais fracos a enfrentar esta crise económica que se avizinha poderá ser o sinal de que também conseguiremos estar juntos quando outras crises chegarem. Depois da crise provocada pelo coronavírus, outras virão. A crise climática e migratória que viveremos nos anos que se aproximam vai trazer o derradeiro teste à nossa capacidade de sobrevivermos como espécie.

Por agora, pedem-nos que cada um de nós coopere ficando em casa. Fiquemos em casa então — mesmo quando, daqui a umas semanas, parecer que já não dá mais para aguentar e que as consequências de sair de casa, para os mais aptos, serão mínimas. Mesmo quando a real cor do cabelo se notar ou o cabelo ficar grande e isso for evidente nas conferências online com os nossos colegas de trabalho. Pois é. Vamos ter de ser altruístas. Será um teste à teoria de Darwin de que o ser humano evolui com base num gene altruísta e uma prova que poderá dar esperança para a humanidade neste século. Bem precisamos dessa esperança.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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