O vírus de um novo mundo

Fez-se a globalização em nome do lucro, e todos se esqueceram dos direitos sociais e políticos, debaixo da ilusão de que o desenvolvimento económico conduz à democracia liberal - puro engano, e a China está aí para o provar.

O vírus é um agente de uma doença desconhecida e um gerador disruptivo do nosso modo de vida. Para o travarmos é necessário suspender o quotidiano, fechar países, encerrar fronteiras, parar a economia. Como referiu ao Le Figaro Christophe Barraud, classificado pela Bloomberg como o melhor especialista em previsões sobre as estatísticas americanas, europeias e chinesas, “o único meio para controlar a epidemia... é o de matar a economia!”.

As prioridades de ontem não se coadunam com as exigências de hoje, e ouvir Emmanuel Macron referir agora que a saúde gratuita e “o Estado de providência não são custos ou encargos, mas bens preciosos […] que devem estar fora das leis de mercado” é assumir que algo estava muito errado nas nossas sociedades, com a miragem do lucro tornada no motor das nossas vidas.

Aprendemos pouco, quase nada, com a crise financeira, que vai para uns dez anos. Nessa altura impôs-se uma narrativa que tornou a dívida, o défice e os sacrossantos mercados financeiros no alfa e ómega de sucessivos governos. Era preciso salvar o sistema financeiro da espiral de cupidez onde se tinha encerrado em nome do lucro a todo o custo.

Nicolas Sarkozy, então chefe de Estado francês, achava no auge da crise que era urgente novas regras na distribuição dos ganhos das empresas, que deveriam ser distribuídos também pelos trabalhadores. Mas, como escreveu a dramaturga Yasmina Reza, “não há verdade senão no presente”, precisamente num livro sobre a campanha de Sarkozy, e aquelas suas palavras foram rapidamente esquecidas logo após o cidadão comum ser chamado a salvar o sistema bancário, com cortes e austeridade, com empresas a irem à falência, com desempregados e emigrantes a multiplicarem-se, com os serviços do Estado obrigados a encolher - entre eles, claro está, o da Saúde.

Entre as bolsas e as vidas, optou-se claramente pelas primeiras. E o cúmulo de tudo isto, a quase incapacidade, deliberada ou não, de travar os fundos canalhas (paradigma do circo financeiro que lhes permite apostar contra governos e empresas em nome dos proveitos - os seus) e os paraísos fiscais (esse mundo opaco onde muito poucos têm muitos milhares de milhões, a maior parte em esquemas fraudulentos de fuga ao fisco, alguns deles até sob a protecção benevolente de países da União Europeia).

Os escândalos sucessivos, “offshore leaks”, “Luxemburgo leaks”, “Panama papers”, “Luanda leaks”, de pouco mais serviram do que para revelar a sua dimensão e o que ela representa de gritante injustiça num mundo já de si profundamente desigual, com três dúzias de milionários a terem tanta riqueza quanto a metade da população mais pobre do planeta, mais de três mil milhões de pessoas

A miragem do lucro enfraqueceu-nos nesta altura de alarme, pois foi em nome dele que entregámos à China instrumentos essenciais que hoje nos fazem falta e que impedem a solidariedade mínima entre parceiros. E compreende-se facilmente, porque foi em seu nome que centenas de empresas se instalaram no “Império do Meio” nas últimas décadas, levadas pelos baixos preços da mão-de-obra e pela miragem do seu vastíssimo mercado consumidor.

Para se ter uma ideia, só em Wuhan, epicentro da crise sanitária que vivemos, está a Renault, o grupo hoteleiro Accor e até a gigante de luxo LVMH. Entre muitos outros. Fez-se a globalização em nome do lucro, e todos se esqueceram dos direitos sociais e políticos, debaixo da ilusão de que o desenvolvimento económico conduz à democracia liberal - puro engano, e a China está aí para o provar.

A China tornou-se uma peça essencial na cadeia de produção de bens à escala planetária, e produz hoje a maioria dos ingredientes necessários para a criação de antibióticos, é o maior produtor mundial de máscaras cirúrgicas e fabrica cerca de metade dos ventiladores N95 (tendo mesmo forçado as empresas estrangeiras a operar no seu território a vendê-los apenas ao Governo chinês).

O mundo ficou dependente da ditadura chinesa. E agora, quando a Itália pediu ajuda, só ela se chegou à frente. Enviou mil ventiladores, dois milhões de máscaras, milhares de fatos de protecção e até equipas médicas. Como referiu o presidente da Sérvia, “a ajuda europeia é um conto de fadas”.

A China está a procurar impor uma narrativa e apresentar-se como um líder global confiável. Mas não deixa de ser uma ditadura. Apesar disso, será sempre uma peça determinante no que sair dos escombros onde a economia mundial irá cair a seguir a esta tragédia sanitária, desafio que terá ainda de ter em conta a emergência das alterações climáticas que, tal como o vírus, muitos teimam em negar - até ao dia em que, tal como o vírus, sejam atingidos em pleno.

Os outros grandes, EUA., Rússia, terão também a sua capacidade de influência em função da forma como saírem desta crise. Porque ainda não sabemos como vamos todos sair daqui, só sabemos que tudo vai mudar a partir daqui. O vírus vai-nos fazer entrar num novo mundo.

Já a Europa terá a sua grande prova, e já não lhe será possível salvar o Euro utilizando de novo o registo do “gastaram dinheiro a mais” dirigido apenas a alguns. Depois disto, esse argumento dificilmente será aceitável. Agora é a altura das grandes decisões, e se a Europa quer poder continuar a ter uma voz e a pesar nas grandes decisões internacionais, a União é fundamental.

Mas sem uma liderança firme, forçosamente solidária e sem hesitações, ela rebenta de vez. A liberdade capitalista será no modelo chinês ou terá de se reconfigurar no modelo democrático ocidental. Com mais equidade na distribuição da riqueza, mais respeito pela natureza e muito mais solidariedade.

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