Uma família portuguesa em veleiro pelo mundo: “Até nos perguntam como entreter os filhos duas semanas em casa”

Dar a volta ao mundo num veleiro era um velho sonho que decidiram realizar em família. Rute Gonçalves, João Monarca e os três filhos, Marta, Afonso e Cármen, partiram no ano passado e, desde então, partilham aventuras na página “5 a bombordo”. Rute dá voz aos cinco para a Fugas a partir de Cartagena, na Colômbia.

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Somos uma família de cinco (pais e três crianças) e estamos a viajar no nosso veleiro desde Julho de 2019. Chegámos às Caraíbas no dia 24 de Dezembro e passámos os últimos meses a conhecer 12 das muitas ilhas que existem no mar das Caraíbas. Actualmente estamos na Colômbia, onde chegámos no dia 11 de Março.

Temos acompanhado de perto e obviamente com preocupação a evolução desta pandemia com dimensões que não têm precedentes nos últimos anos. Diria que é a crise de saúde mais grave que a minha geração alguma vez viveu.

Foi recentemente, na nossa chegada à Colômbia, que sentimos de forma mais efectiva a existência de mecanismos para evitar a propagação do vírus. Dada a dimensão do país, a Colômbia apresenta um número relativamente reduzido de casos (34 até ao momento). Apostaram em procedimentos de controlo dos visitantes bastante rigorosos e quase todos os dias têm ajustado as medidas.

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No nosso caso, que chegámos ao país de barco, já passava da uma da manhã e recebemos uma comunicação via rádio da guarda costeira. Tivemos autorização para ancorar na baía de Santa Marta e no dia seguinte entrámos de barco na marina. Fomos recebidos por um marinheiro com máscara e luvas colocadas. Na operação de atracagem, para facilitar a manobra, eu, Rute, saltei do barco para o pontão, e o funcionário da marina informou que tinha que regressar ao barco e que só poderia sair depois de uma visita das autoridades locais para avaliar o estado sanitário da tripulação do Domum. E assim foi.

Cerca de uma hora depois tivemos a bordo uma equipa de dois elementos da direcção da saúde que fez um questionário sobre o nosso itinerário (os últimos dez portos onde tínhamos estado) e perguntas sobre o estado de saúde de cada membro da tripulação, verificaram a febre de todos e efectuaram uma inspecção de higiene ao barco. Cerca de 45 minutos a bordo, e como estávamos todos bem de saúde, recebemos luz verde para sair do barco e efectuar o procedimento normal de entrada no país. Foi-nos explicado o ponto de situação do vírus na Colômbia, que a cidade em que estávamos não tinha nenhum caso reportado e que Cartagena, cidade onde estamos neste momento, apenas tinha um infectado. Percebemos que quem pretendia entrar no país vindo de países mais afectados (que não era o nosso caso) deveria ficar 14 dias em quarentena, no hotel ou noutro alojamento, um convite a não viajarem para cá! Confesso que este apertado controlo nos tranquilizou no dia da chegada.

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Depois deste procedimento, nos primeiros dias no país não sentimos quase sinais do vírus. Observámos alguns avisos sobre questões de higiene, mas a Colômbia estava a funcionar a 100%, ao nível de escolas e restantes serviços, e a vida das pessoas parecia não se ter alterado.

Considerámos que poderíamos visitar o país tomando obviamente medidas de protecção. Levámos mais à risca as questões de higienização das mãos, colocámos a uso o gel desinfectante que tínhamos a bordo, ingerimos bastante água e na viagem de autocarro (minivan) para Cartagena optámos os cinco por colocar máscaras, uma vez que o ambiente é bastante fechado (usamos as que tínhamos a bordo, guardámos muitas que tínhamos das obras do barco), olhavam para nós como se estivéssemos infectados! Evitámos também circular em locais com mais aglomeração de pessoas e menos ventilados. Hoje, dia 16 de Março, a situação já se alterou. Apesar da propagação se manter sem grande evolução, o país fechou as fronteiras e anteciparam as férias da Páscoa nas escolas.

Após a nossa estadia, que tínhamos programado de cinco dias à Colômbia, pretendíamos seguir para San Blas, um arquipélago de ilhas no Panamá, mas já nos informámos que, pela sua dimensão, e eventual dificuldade em controlar as entradas, fecharam os portos. Assim, teremos que seguir directamente para Cólon, onde pretendemos atravessar o canal do Panamá. Inicialmente informaram-nos que nos podiam receber, estando sujeitos a uma inspecção idêntica à realizada aqui na Colômbia, mas estão agora a tomar medidas mais rígidas e aparentemente teremos que fazer quarentena de 14 dias a bordo antes de pisar o país, após os cerca de três dias de viagem para lá chegar.

Falando com familiares e amigos, sabemos que em Portugal as medidas tomadas são mais efectivas dada a gravidade da situação, muitos dos nossos amigos estão em casa com os filhos, e em tom de brincadeira até nos perguntam como entretê-los duas semanas em casa! Viajando num veleiro, passamos bastante tempo isolados em travessias (a do Atlântico foram 14 dias, e a maior que se segue, do Pacífico, será perto de 30 dias), no nosso caso sem a ansiedade do que se está agora a passar, mas a vivermos os cinco numa área de cerca de 40m2 , com electricidade e água condicionada, sem TV e sem acesso ao que nos nossos dias parece ser um bem precioso e imprescindível, a Internet! Vivemos com o balançar do barco, dias em que não conseguimos cozinhar, estudar ou brincar. Fazemos turnos nocturnos de três em três horas. Olhar as estrelas e imaginar imagens nas nuvens passou a ser programa familiar.

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Foi uma escolha. É duro, cansativo, por vezes aborrecido, mas chegámos ao destino juntos e mais unidos. A próxima quarentena sabemos que não vai ser uma escolha, e a perda de liberdade é talvez o que mais custa. A perspectiva muda. Mas continuamos juntos e com saúde e nesta fase é o que mais importa.

Esperamos que todos vocês se encontrem bem, junto das famílias os que tiverem esse privilégio, e que aproveitem este tempo difícil para viver mais devagar, agora que muitos temos o tempo que todos os dias nos voava das mãos.

Este texto foi enviado no dia 16 de Março de 2020

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