O encontro improvável entre Toffler e Raul Seixas, nestes dias em que a Terra parou

Toffler imaginava-nos a trabalhar em casa. Como estamos. E Raul Seixas escreveu O dia em que a Terra parou. Como se fosse hoje.

Talvez alguém se lembre de ler isto: “Sugerir que milhões de pessoas poderão em breve passar o tempo em casa, em vez de sair para o escritório ou para a fábrica, é desencadear uma chuva imediata de objecções.” Pois foi isto mesmo que Alvin Toffler (1928-2016) escreveu no seu livro A Terceira Vaga, lançado em 1980 e editado em Portugal em 1984 pela Livros do Brasil. Pois no 16.º capítulo do seu livro, que aqui tinha por título “O chalé electrónico”, Toffler adiantava algumas dessas possíveis objecções: “Como se pode fazer algum trabalho com miúdos a correr à nossa volta?” Ou: “As pessoas precisam de contacto directo umas com as outras para desenvolverem a confiança necessária para trabalharem juntas.” Ou ainda: “As pessoas não se sentirão motivadas a não ser que tenham um chefe a vigiá-las” e “A arquitectura da casa média não está preparada para isso”. Pois bem: tudo isto foi deitado por terra por um vírus, com o correctíssimo pretexto de evitar o contágio.

A preocupação de Toffler, no entanto, ia mais além. Deixando para trás as duas primeiras grandes vagas de mudança (a revolução agrária e a revolução industrial), ele imaginava já em curso uma terceira vaga assente na revolução da informação, “muitíssimo tecnológica e anti-industrial”, ou seja, contrária à massificação inerente à segunda vaga e à produção em linhas de montagem. O que se passou, desde que o livro foi editado, misturou a visão de Toffler às velhas regras massificadoras. Ele imaginava transferir grande parte do trabalho humano para os lares, mas apesar de toda a crescente tecnologia, inexistente à data do livro (Internet, redes sociais, telefones móveis transformados em minicomputadores, que por sua vez já se tinham transformado em portáteis e em larga escala), manteve-se tudo o que ele já via ultrapassado: a concentração do trabalho em empresas, sobretudo nas cidades, as longas filas nos transportes em horas de ponta, a poluição e o desgaste inerentes a esse movimento diário e contínuo, sendo o teletrabalho mais um prolongamento do trabalho presencial do que uma alternativa a este, ampliando-o. A ideia de “uma nova ênfase ao lar como centro da sociedade”, defendida por Toffler, ficou mesmo pelo caminho. Não é difícil perceber porquê, e ele próprio anteviu isso. Se alguns sectores proliferariam nessa tal Terceira Vaga, outros iriam passar um mau bocado: “As companhias petrolíferas, a indústria automóvel e o comércio de bens imobiliários comerciais sofreriam”, escreveu Toffler. E isso significaria milhões de desempregados, apesar dos previsíveis ganhos em termos ambientais.

Agora, com a ameaça da covid-19, estamos numa espécie de limbo que é também um teste à escala global à utopia de Toffler, ainda que atrasado, e sob imposição sanitária. Perdas e ganhos deste exercício estarão a ser contabilizados e talvez sirvam para uma reflexão futura acerca daquilo a que se convencionou chamar “o nosso modo de vida”, ou o padrão das grandes metrópoles, que difere noutras zonas do globo, como em grande parte de África. Mas o mais provável, passado o susto, é que tudo volte ao que era antes, repetindo-se erros que já deviam ter sido ultrapassados, em vez de se conjugarem as enormes possibilidades das tecnologias de informação e comunicação com novos hábitos de vida comunitária.

Neste período, porém, continuaremos em casa. Fazendo dela o “chalé electrónico” que Toffler idealizou. Isto funciona para toda a gente? Nem toda. A começar pelos hospitais ou pelos serviços que exigem manutenção diária ou regular (transportes, lixos, etc). E também não permite que toda a gente continue a trabalhar com a devida remuneração. Um caso particular (haverá outros) é o dos músicos: chamados a intervir, ou voluntariamente oferecendo-se para isso, em casos de calamidades naturais ou acções de solidariedade, os concertos que agora vão criando a partir de casa (e já muitos o fazem) para as redes sociais e para manterem contacto com o público, não têm remuneração assegurada. E sendo essa, além dos direitos de autor, a sua única forma de subsistência (aos que vivem só da música), deve encontrar-se, havendo já quem o procure, um modo eficaz de a garantir.

Por falar em músicos, fiquemos com um: o brasileiro Raul Seixas (1945-1989) e o tema que deu título ao seu LP de 1977, O dia em que a Terra parou (obrigado, Roberto Moreno, pela lembrança!), baseado no título de um filme de ficção científica de Robert Wise (The Day the Earth Stood Still, de 1951, que teve um remake em 2008 por Scott Derrickson), filme que por sua vez se baseou no conto Farewell to the Master, de Harry Bates (1900-1981). Seixas aproveitou apenas a ideia do título e deu-nos um cenário que quase antevê o actual: “O empregado não saiu pro seu trabalho/ Pois sabia que o patrão também não tava lá/ Dona de casa não saiu pra comprar pão/ Pois sabia que o padeiro também não tava lá/ E o guarda não saiu para prender/ Pois sabia que o ladrão também não tava lá/ E o ladrão não saiu para roubar/ Pois sabia que não ia ter onde gastar.” Etc. Experimentem ouvi-lo.

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